01 abril 2015

NÃO VENHAS TARDE: 8. ENCANTOS DA VIDA AO AR LIVRE

20 de Setembro
Afinal ontem acabámos a dormir num jardim público (não me perguntem qual),  explico o porquê da mudança de planos. Arranjámos um sítio porreiro para ficar, na encosta mais arborizada da Acrópole, sob um vetusto pinheiro que, generoso, acumulara sob o toucado da copa uma fofa cama de caruma em nossa intenção. Dispusemos os sacos, abrimos a lata rectangular de Three Nuns, tabaco de cachimbo de que comprámos em Londres várias embalagens, e estava eu a encher o fornilho com a sensação de à vontade de quem se começa a habituar à vida ao ar livre quando passou um tipo ao nosso lado. A coisa não foi mais do que isto – enfim, ele desviou a rota para passar perto de nós – nem houve nenhuma palavra trocada, nada. Mas pareceu-nos haver algo de ‘volta de reconhecimento’ no modo como ele nos ignorou e as hipóteses que ventilámos foram suficientes para acharmos o local demasiado isolado e escuro em caso de sermos surpreendidos na inocência do pleno sono.
Então recolhemos as nossas coisitas, enrolámos os sacos-cama e descemos por ali abaixo até ao tal jardim público. O jardim é circundado por uma sebe de buxo aparado em forma de paralelepípedo e é no espaço deixado entre a face inferior da sebe e o chão que nos arrumámos, pois ali ninguém nos vê e ouve-se, como uma canção de embalar, o tranquilizante vai e vem dos automóveis que passam a escassos metros. Mas dormimos pessimamente: o colchão de terra era pétreo, o ruído do trânsito constante, e cheirava a merda que tresandava, um cheiro nauseabundo, próximo, que parecia intensificar-se sem explicação. À luz da manhã tudo se esclareceu: o local é poiso de gatos e cães como atestavam os vestígios arqueológicos agarrados ao saco-cama.
Fugimos dali cedíssimo e, numa disposição de cão, fomos para o flea market de Monastiriki esperar pelos Joαηηoμ, sentados no chão encostados à porta ondulada que ainda se encontra corrida. A nossa presença, quando chegaram, já não desperta sorrisos e não mais somos merecedores de refrescos ou cadeiras, o favor da batedeira está pago e chegou a hora de ir embora.
Como tivemos de ir a casa deles buscar as mochilas, lá armazenadas desde a madrugada da nossa chegada à Grécia, aproveitámos para nos vingarmos com moderação, trancados na casa de banho onde, à vez, tomámos copiosos banhos de imersão que nos limparam do corpo e da memória o cheiro a merda que nos perseguia. Enquanto, enfiado em água espumosa até ao pescoço, o Rui enuncia que está cheio da Atenas e que devemos prosseguir de imediato eu, acenando cautelosamente por entre o embaciado do espelho sobre o lavatório, rapo a barba de quatro dias, aproveitando para delinear os contornos da inovação de um bigode e mosca. Sempre ambicionei usar bigode e mosca, como a do Frank Zappa, mas em Portugal não tinha lata para enfrentar os comentários. Do lado de fora da porta, silencioso e paciente, o Nikolas espera que a gente lhe deixe a casa em paz.
© Fotografias de Pedro Serrano, Grécia 2014.


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