19 de Setembro, manhã
Atenas,
agora que a consigo ver em perspectiva aqui do alto, faz lembrar Faro, se a
cidade chã que é Faro fosse derramada pelas colinas de Lisboa. A cidade é
branca e a perder de vista, trepando as elevações de terreno que a limitam por,
no seu crescimento, não lhe sobrar outro remédio. O mar espreita de todos os
horizontes. É imensa (a área metropolitana tem dois milhões e meio de
habitantes, um quarto da população do país), pontuada aqui e ali por maciços de
verde, aquele verde contido e poeirento da vegetação dos climas quentes e
secos. Quase se ouve estalar o tempo. Sim, se fosse aqui despejado de olhos
vendados e logo que a minha vista se habituasse à luz intensa, reconheceria,
apenas pela vibração intuitiva da minha bússola interna, estar na Europa, no
sul da Europa e nas franjas do Oriente, pois exala-se aqui um indefinido que...
É como a música que ontem à noite subia, encosta acima, da parte baixa da
cidade: uma música de toada familiar, com algo das tarantelas do sul de Itália
mas já temperada pelas sinuosidades deslizantes da música árabe.
Enquanto
escrevo no meu novo caderno de capa idêntica ao azul-ferrete do céu, o Rui,
aqui ao meu lado esquerdo, preguiça enfiado no saco-cama. Olho em volta:
pinheiros, oliveiras, cedros, maciços de arbustos de folha agreste, e o
fusiforme elegante dos ciprestes que aponta para o céu como o fumo de uma
queimada. Uma pomba, esculpida em baixo-relevo, parece debicar a casca de um
pinheiro que invade o mármore onde pousa.
Fomos
acordados por dois polícias que, de apito na boca e vociferando em grego, eram,
no entanto, suficientemente explícitos para percebermos o que pretendiam. A
Acrópole está já pejada de excursões e de máquinas fotográficas, pelo que é
preciso manter a dignidade do local – sem desguedelhados estacionados sob os
pinheiros como num acampamento cigano! Nada a contestar, eles foram
suficientemente simpáticos ontem à noite quando decidiram deixar-nos ficar aqui
e, sendo assim, desfraldados e enrolados os sacos-camas, deixámos o nosso ninho
de caruma. O dia começa a aquecer.
Um par de
metros mais à frente, reclinada sobre uma rocha sob a qual deveríamos passar,
uma aparição loura sorri-nos e diz: “Good morning!”. O nosso aspecto desbragado e estremunhado foi o
suficiente para a fazer sorrir ou não foi suficiente para a fazer recear-nos?
Voltámos a encontrá-la uns minutos depois, desta
vez ao nível terreno e, armado com um tubo de pastilhas de fruta na mão
estendida, dirijo-me-lhe:
– Obrigado pelo seu
bom dia...
E estive uns poucos minutos por ali, a dissolver
tempo com ela e sem vontade de seguir caminho. Além de linda, tinha uma
cativante maneira, pausada e doce, de falar. Contei-lhe (todos os viajantes
desta rota acabam por contar antecedentes e intenções) da nossa viagem à Índia
e de como tudo começou. Chama-se Viktoria, veio de Frankfurt, via Roménia,
passou duas semanas numa das ilhas gregas onde ver o mar e o pôr-do-sol,
diz-me, é uma boa maneira de chegar à concentração. Trocámos moradas e prometi
que lhe escreveria da Índia, é uma promessa que me apetece cumprir e que
cumpriria desde já se tivesse os selos hindus necessários.
Anda um homem a apanhar papéis por entre os
pinheiros e diz-me: “Good morning!”
Retornámos às imediações do templo de Hefesto e,
após saltar uma vedação, lavámos a cara na duvidosa água histórica de uma bacia
de pedra milenar. Gastámos o resto do dia numa viagem inútil à estação central
de caminhos de ferro, em busca de horários e bilhetes para a próxima etapa:
Istambul. Nada feito, para nos fazer desconto o gajo da bilheteira queria os
nossos cartões universitários, coisa que não temos, e, sem isso, a tarifa é
demasiado alta para a nossa bolsa.
É noite e estamos outra vez no cafezinho de ontem, onde só há mais uma mesa ocupada. Comprámos aerogramas, aquelas cartas autossuficientes que, já vindo seladas, se dobram sobre si próprias formando um envelope pronto a enviar, e eram muito usados pelos soldados durante a guerra colonial. Um empregado varre o café sem pressa de terminar. Combinámos ir dormir outra vez na Acrópole, mas em poiso mais distante das grades e da vigilância dos guardas. Acabei de ajustar os vincos do meu aerograma e dou por mim a pensar na alemã que encontrámos de manhãzinha, pousada na rocha como se tivesse descido dos céus com os raios da aurora.
É noite e estamos outra vez no cafezinho de ontem, onde só há mais uma mesa ocupada. Comprámos aerogramas, aquelas cartas autossuficientes que, já vindo seladas, se dobram sobre si próprias formando um envelope pronto a enviar, e eram muito usados pelos soldados durante a guerra colonial. Um empregado varre o café sem pressa de terminar. Combinámos ir dormir outra vez na Acrópole, mas em poiso mais distante das grades e da vigilância dos guardas. Acabei de ajustar os vincos do meu aerograma e dou por mim a pensar na alemã que encontrámos de manhãzinha, pousada na rocha como se tivesse descido dos céus com os raios da aurora.
Nota: Morning As Broken é nome de uma canção tradicional interpretada por Cat Stevens em 1971.
© Fotografias de Pedro Serrano, Atenas, 2014.
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