13 março 2015

NÃO VENHAS TARDE: 4. AS 3 REGRAS DE OURO

16 de Setembro, aeroporto de Gatwick; duas da manhã

Em frente a mim, sentado num sofá, o Rui dorme dentro do saco-cama ao lado de uma gaja linda que dorme também. Foi um longo dia e ele tem mais razões para estar arrasado do que eu, pois sempre escapei à constrictora emocional das despedidas e das derradeiras pressões para não partirmos nesta jornada insensata.
No meu caso, há cerca de um mês que não punha os pés em casa, deixei praticamente de o fazer nos dias que se seguiram à cena com o meu pai em torno do dinheiro. Durante esse tempo fui dormindo aqui e ali, em casa de amigos, em apartamentos desconhecidos de novos conhecimentos; passando por casa a altas horas da noite para não me cruzar com ninguém, ir buscar roupa ao meu quarto e acrescentar a data da ocorrência numa folha de papel que, abandonada em cima da secretaria do meu quarto, diz: “Hoje não venho dormir.”
Abro a porta da rua procurando não fazer ruído, como um ladrão subo, às escuras, as escadas para o primeiro andar, acendo o candeeirinho que está sobre a mesa e dou por mim a olhar para o quarto vazio com tristeza: a cama feita, os meus pertences a ganhar a tonalidade do esquecimento. A bem dizer já não pertenço ali, os meus dias de criança e adolescente terminaram – em breve passarei a ser uma visita naquela que foi a minha casa. Ninguém me está a forçar a isso, é a vida que segue o seu caminho.
Mas, vendo a coisa por um prisma mais sorridente, este afastamento sem despedida evitou-me a erosão diária a que o meu companheiro de aventura foi sujeito por parte dos pais e de que fui testemunha, pois para além de nestes últimos tempos ter dormido em casa dele amiúde, dali fizemos o centro de lançamento da viagem.
Na véspera da partida fiquei em casa do Juca, estivemos a conversar os dois até às sete da manhã e havia algo de última conversa no nosso diálogo lento, o que o tornou intenso. Com três horas de sono no bucho, vivi o almoço em casa do Rui como se estivesse a assistir a uma projecção de cinema verité: o nervosismo do pai do Rui, que no seu incómodo desaparecia entre portas; o olhar da mãe que – depois de todas as tentativas histriónicas para evitar a largada – se tornara suplicante; a lamentação surda e de maxilares aferrolhados do Juca; o embaraço do Ventoinha, e o soslaio semi-irónico de M., a actual namorada do Rui, já habituada a todos estes ingredientes angulosos. Depois, no meio de lágrimas, partimos para Lisboa numa boleia do Juca e na companhia fiel da M. e do Ventoinha. Em Lisboa fomos aos Olivais buscar L., até há não muito minha namorada, a qual, extasiada com a nossa demanda, não quis deixar de estar presente na despedida para a “Viagem”. Saímos da Portela por volta das oito da noite e, na curva da gate, não nos virámos para trás num adeus, como é próprio do viajante empedernido.
Póvoa de Varzim, Agosto 1976: Rui, Pedro, Ventoinha, Manel.
A chegada a Inglaterra foi conturbada: os nossos cabelos pelos ombros, as jeans de cano dobrado, as minhas botas negras de cabedal pelo joelho e o casaco preto de couro do Rui; as mochilas carregadas de sinais inequívocos de “atenção gente estranha” e, sobretudo, as nossas conjuntivas ainda congestionadas pelo derradeiro charro fumado antes de entrar no avião, fizeram disparar o ímpeto controlador dos funcionários alfandegários. Apesar de em trânsito para outras paragens e apenas com uma permanência de 24 horas em solo inglês, estivemos quase duas horas a ser espremidos num inquérito policial que incluiu uma lista exaustiva de perguntas e uma devassa sistemática e milimétrica às nossas mochilas após termos sido conduzidos a uma sala especial.
– É capaz de explicar a razão pela qual este comprimido não tem o nome gravado – queria saber o tipo fardado de azul, apontando uma drageia de anti-histamínico que, selada num blister com uma das faces transparentes, não relevava o título à vista desarmada.
  Sei lá – respondi – possivelmente porque o comprimido está virado ao contrário: o nome deve estar gravado no outro lado..., no dark side – improvisei em homenagem ao penúltimo álbum dos Pink Floyd [1], grupo genuinamente inglês. – Se quiser – acrescentei – pode abrir para verificar.
Mas, na bancada ao lado, tinha acabado de explodir um facto bem mais interessante. O tipo que esquadrinhava a mochila do Rui descobrira algo inusitado no interior dos tubos de alumínio da estrutura e, usando um gancho de metal, esfuracava por ali dentro como se estivesse entretido com o recheio de uma antena de lagosta! A descoberta dos rolos de notas, uma metade na mochila do Rui e, minutos mais tarde, a outra metade na minha, emocionou os homens. Lá lhes explicámos que no nosso país, graças a uma mudança política de regime recente, não era permitido sair com mais do que 7 contos e que 7 contos não era suficiente para sobreviver três meses fosse onde fosse, mesmo que esse “fosse onde fosse” fosse a Índia.
  Mas então vocês são uns vigaristas! – desabafou o carrasco do Rui.
– Penso que todos o somos um pouco – respondeu o meu amigo.
Depois de uma última pergunta, acompanhada de muitas sorvedelas nasais sobre a pobre flor seca aprisionada entre duas páginas do Tarot que, juntamente com O Fio da Navalha [2] e outros livros integram a nossa bibliografia obrigatória para a viagem, fomos mandados entrar em paz no país, até com um perceptível ar de peso na consciência por parte de quem nos revistara. Para nós, apressados a considerar tudo o que o vinha ao nosso encontro como experiência positiva e coincidência significativa, o incidente na alfândega acabou por se revelar muito útil, pois, sem o auxílio daquele providencial gancho, não estávamos a ver como iríamos sacar do âmago das mochilas os rolos de escudos que precisávamos de trocar, o mais tardar, no dia seguinte!  
Agora já passa das três da manhã e o Rui mudou de posição dentro do saco-cama o que o fez adornar confortavelmente sobre o ombro da beldade que dorme ao lado. 
A mim, está a custar apagar-me. Não consigo dormir sentado e, para além dessa limitação, estou excitado com tudo isto que nos acontece. Portugal ficou muito lá para trás e a carga emocional das últimas semanas parece ter-se dissolvido no impacto daquele espaço imenso em que nos encontrámos, e onde, com ar naturalíssimo, dezenas de pessoas aguardam ligações com todos os cantos do mundo.
Estou, em folhas soltas, a escrever estes apontamentos sobre o Tarot, sentado, de pernas cruzadas, encostado a uma coluna da gare de Gatwick: amanhã vamos a Londres e tenciono comprar um caderno para dele fazer o meu diário de bordo. Procuramos também um Overland to India, um guia underground para aquelas paragens de que ouvimos falar, e o Rui quer comprar uma edição em condições do I Ching. Ele tem uma referência qualquer para umas livrarias alternativas que há para os lados do British Museum onde poderemos encontrar tudo isto.
No Porto, nos meses que antecederam a partida, fomos, de conversa em conversa, estabelecendo alguns assentimentos comuns para orientação da viagem. São poucas, as regras, mas funcionam como espinha dorsal do empreendimento e, de certa maneira, são o cartão de visita do tipo de viajantes que seremos, em tudo distintos do turista típico:
Primeiro – viajaremos sem máquinas fotográficas ou mapas: iremos evoluindo na rota ao sabor da etapa seguinte.
Segundo – para desenjoar do que tem sido ultimamente a nossa vida neste domínio e estarmos mais disponíveis para experiências espirituais, evitaremos envolver-nos em contactos amorosos ou sensuais. Já por isso partimos de casa mais ou menos livres de amarras, embora eu mantenha uma vaga ligação sentimental em Guimarães e o Rui outra no Porto.
Terceiro – um pouco por razões similares às do ponto anterior não recorreremos a substâncias alteradoras do estado de consciência, como se costuma dizer. Ou seja: evitaremos erva, hashish e todas as outras tentadoras substâncias que o Oriente produz. Esta última regra parece-me, a mim, a mais difícil de cumprir, precisamente pela profusa oferta dos locais para ondes nos dirigimos!
Olho o meu adormecido amigo: na génese da sua viagem está uma marcada tendência mística, ele parte à procura de uma razão de ser e do respectivo modo de estar e, não menos importante, da figura de um mestre que possa ajudar a cumprir o caminho e o atingir desse estado que, conforme as escolas, uns chamam de conhecimento e outros de iluminação. Eu também me interesso por essas coisas, claro, e, desde os ensinamentos de Buda aos do brujo mexicano D. Juan[3] tenho lido um pouco de tudo nos últimos cinco ou seis anos. Mas a minha aproximação é mais diletante, diria (e digo-o agora, na confortável posição que a passagem de trinta e cinco anos sobre o assunto possibilita). Resumindo: embarco nisto mais como um turista exótico do que como um aprendiz de feiticeiro.
Os olhos fecham-se-me. Pelo tecto da gare insinua-se a luz acinzentada da madrugada. Como diriam os Moody Blues, uma outra banda inglesa de culto:

Dawn is a feeling,
A beautiful ceiling,
The smell of grass
Just makes you pass
Into a dream...[4]



[1] Dark Side of the Moon, 1973, Harvest/EMI Records.
[2] O Fio da Navalha, de Somerset Maugham, publicado em 1944. Edição portuguesa, na Livros do Brasil-Colecção Dois-Mundos, editada nos anos de 1950.
[3] Mediados através dos profusos escritos do seu profeta americano Carlos Castañeda, editados pela primeira vez em português pela Record, Rio de Janeiro, durante os anos 70.
[4] Da canção “Dawn” (Pinder), do álbum Days of Future Passed, 1967, Deram/Decca.

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Porto 2010; (2) Fotógrafo desconhecido, Póvoa de Varzim 21 de Agosto 1976.

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