16 de
Setembro, aeroporto de Gatwick; duas da manhã
Em frente a mim, sentado num sofá, o Rui dorme
dentro do saco-cama ao lado de uma gaja linda que dorme também. Foi um longo
dia e ele tem mais razões para estar arrasado do que eu, pois sempre escapei à
constrictora emocional das despedidas e das derradeiras pressões para não
partirmos nesta jornada insensata.
No meu caso, há cerca de um mês que não punha os
pés em casa, deixei praticamente de o fazer nos dias que se seguiram à cena com
o meu pai em torno do dinheiro. Durante esse tempo fui dormindo aqui e ali, em
casa de amigos, em apartamentos desconhecidos de novos conhecimentos; passando
por casa a altas horas da noite para não me cruzar com ninguém, ir buscar roupa
ao meu quarto e acrescentar a data da ocorrência numa folha de papel que,
abandonada em cima da secretaria do meu quarto, diz: “Hoje não venho dormir.”
Abro a porta da rua procurando não fazer ruído,
como um ladrão subo, às escuras, as escadas para o primeiro andar, acendo o
candeeirinho que está sobre a mesa e dou por mim a olhar para o quarto vazio
com tristeza: a cama feita, os meus pertences a ganhar a tonalidade do
esquecimento. A bem dizer já não pertenço ali, os meus dias de criança e
adolescente terminaram – em breve passarei a ser uma visita naquela que foi a
minha casa. Ninguém me está a forçar a isso, é a vida que segue o seu caminho.
Mas, vendo a coisa por um prisma mais sorridente,
este afastamento sem despedida evitou-me a erosão diária a que o meu
companheiro de aventura foi sujeito por parte dos pais e de que fui testemunha,
pois para além de nestes últimos tempos ter dormido em casa dele amiúde, dali
fizemos o centro de lançamento da viagem.
Na véspera da partida fiquei em casa do Juca,
estivemos a conversar os dois até às sete da manhã e havia algo de última
conversa no nosso diálogo lento, o que o tornou intenso. Com três horas de sono
no bucho, vivi o almoço em casa do Rui como se estivesse a assistir a uma
projecção de cinema verité: o
nervosismo do pai do Rui, que no seu incómodo desaparecia entre portas; o olhar
da mãe que – depois de todas as tentativas histriónicas para evitar a largada –
se tornara suplicante; a lamentação surda e de maxilares aferrolhados do Juca;
o embaraço do Ventoinha, e o soslaio semi-irónico de M., a actual namorada do
Rui, já habituada a todos estes ingredientes angulosos. Depois, no meio de
lágrimas, partimos para Lisboa numa boleia do Juca e na companhia fiel da M. e
do Ventoinha. Em Lisboa fomos aos Olivais buscar L., até há não muito minha namorada,
a qual, extasiada com a nossa demanda, não quis deixar de estar presente na
despedida para a “Viagem”. Saímos da Portela por volta das oito da noite e, na
curva da gate, não nos virámos para
trás num adeus, como é próprio do viajante empedernido.
Póvoa de Varzim, Agosto 1976: Rui, Pedro, Ventoinha, Manel. |
A chegada a Inglaterra foi conturbada: os nossos
cabelos pelos ombros, as jeans de cano dobrado, as minhas botas negras de
cabedal pelo joelho e o casaco preto de couro do Rui; as mochilas carregadas de
sinais inequívocos de “atenção gente estranha” e, sobretudo, as nossas
conjuntivas ainda congestionadas pelo derradeiro charro fumado antes de entrar
no avião, fizeram disparar o ímpeto controlador dos funcionários alfandegários.
Apesar de em trânsito para outras paragens e apenas com uma permanência de 24 horas
em solo inglês, estivemos quase duas horas a ser espremidos num inquérito
policial que incluiu uma lista exaustiva de perguntas e uma devassa sistemática
e milimétrica às nossas mochilas após termos sido conduzidos a uma sala
especial.
– É capaz de explicar a razão pela qual este
comprimido não tem o nome gravado – queria saber o tipo fardado de azul,
apontando uma drageia de anti-histamínico que, selada num blister com uma das faces transparentes, não relevava o título à
vista desarmada.
– Sei lá –
respondi – possivelmente porque o comprimido está virado ao contrário: o nome
deve estar gravado no outro lado..., no dark
side – improvisei em homenagem ao penúltimo álbum dos Pink Floyd [1],
grupo genuinamente inglês. – Se quiser – acrescentei – pode abrir para
verificar.
Mas, na bancada ao lado, tinha acabado de explodir
um facto bem mais interessante. O tipo que esquadrinhava a mochila do Rui
descobrira algo inusitado no interior dos tubos de alumínio da estrutura e,
usando um gancho de metal, esfuracava por ali dentro como se estivesse
entretido com o recheio de uma antena de lagosta! A descoberta dos rolos de
notas, uma metade na mochila do Rui e, minutos mais tarde, a outra metade na
minha, emocionou os homens. Lá lhes explicámos que no nosso país, graças a uma
mudança política de regime recente, não era permitido sair com mais do que 7
contos e que 7 contos não era suficiente para sobreviver três meses fosse onde
fosse, mesmo que esse “fosse onde fosse” fosse a Índia.
– Mas então
vocês são uns vigaristas! – desabafou o carrasco do Rui.
– Penso que todos o somos um pouco – respondeu o
meu amigo.
Depois de uma última pergunta, acompanhada de
muitas sorvedelas nasais sobre a pobre flor seca aprisionada entre duas páginas
do Tarot que, juntamente com O Fio da Navalha [2]
e outros livros integram a nossa bibliografia obrigatória para a viagem, fomos
mandados entrar em paz no país, até com um perceptível ar de peso na
consciência por parte de quem nos revistara. Para nós, apressados a considerar
tudo o que o vinha ao nosso encontro como experiência positiva e coincidência
significativa, o incidente na alfândega acabou por se revelar muito útil, pois,
sem o auxílio daquele providencial gancho, não estávamos a ver como iríamos
sacar do âmago das mochilas os rolos de escudos que precisávamos de trocar, o
mais tardar, no dia seguinte!
Agora já passa das três da manhã e o Rui mudou de
posição dentro do saco-cama o que o fez adornar confortavelmente sobre o ombro
da beldade que dorme ao lado.
A mim, está a custar apagar-me. Não consigo dormir
sentado e, para além dessa limitação, estou excitado com tudo isto que nos
acontece. Portugal ficou muito lá para trás e a carga emocional das últimas
semanas parece ter-se dissolvido no impacto daquele espaço imenso em que nos
encontrámos, e onde, com ar naturalíssimo, dezenas de pessoas aguardam ligações
com todos os cantos do mundo.
Estou, em folhas soltas, a escrever estes
apontamentos sobre o Tarot, sentado,
de pernas cruzadas, encostado a uma coluna da gare de Gatwick: amanhã vamos a
Londres e tenciono comprar um caderno para dele fazer o meu diário de bordo.
Procuramos também um Overland to India,
um guia underground para aquelas
paragens de que ouvimos falar, e o Rui quer comprar uma edição em condições do I Ching. Ele tem uma referência qualquer
para umas livrarias alternativas que há para os lados do British Museum onde
poderemos encontrar tudo isto.
No Porto, nos meses que antecederam a partida,
fomos, de conversa em conversa, estabelecendo alguns assentimentos comuns para
orientação da viagem. São poucas, as regras, mas funcionam como espinha dorsal
do empreendimento e, de certa maneira, são o cartão de visita do tipo de
viajantes que seremos, em tudo distintos do turista típico:
Primeiro – viajaremos sem máquinas fotográficas ou
mapas: iremos evoluindo na rota ao sabor da etapa seguinte.
Segundo – para desenjoar do que tem sido
ultimamente a nossa vida neste domínio e estarmos mais disponíveis para
experiências espirituais, evitaremos envolver-nos em contactos amorosos ou
sensuais. Já por isso partimos de casa mais ou menos livres de amarras, embora
eu mantenha uma vaga ligação sentimental em Guimarães e o Rui outra no Porto.
Terceiro – um pouco por razões similares às do
ponto anterior não recorreremos a substâncias alteradoras do estado de
consciência, como se costuma dizer. Ou seja: evitaremos erva, hashish e todas
as outras tentadoras substâncias que o Oriente produz. Esta última regra
parece-me, a mim, a mais difícil de cumprir, precisamente pela profusa oferta
dos locais para ondes nos dirigimos!
Olho o meu adormecido amigo: na génese da sua
viagem está uma marcada tendência mística, ele parte à procura de uma razão de
ser e do respectivo modo de estar e, não menos importante, da figura de um
mestre que possa ajudar a cumprir o caminho e o atingir desse estado que,
conforme as escolas, uns chamam de conhecimento
e outros de iluminação. Eu também me
interesso por essas coisas, claro, e, desde os ensinamentos de Buda aos do brujo mexicano D. Juan[3]
tenho lido um pouco de tudo nos últimos cinco ou seis anos. Mas a minha
aproximação é mais diletante, diria (e digo-o agora, na confortável posição que
a passagem de trinta e cinco anos sobre o assunto possibilita). Resumindo:
embarco nisto mais como um turista exótico do que como um aprendiz de
feiticeiro.
Os olhos fecham-se-me. Pelo tecto da gare
insinua-se a luz acinzentada da madrugada. Como diriam os Moody Blues, uma
outra banda inglesa de culto:
Dawn
is a feeling,
A
beautiful ceiling,
The
smell of grass
Just
makes you pass
Into
a dream...[4]
[1] Dark Side of the Moon, 1973,
Harvest/EMI Records.
[2] O Fio da Navalha, de Somerset
Maugham, publicado em 1944. Edição portuguesa, na Livros do Brasil-Colecção
Dois-Mundos, editada nos anos de 1950.
[3] Mediados através dos profusos escritos do seu profeta americano Carlos
Castañeda, editados pela primeira vez em português pela Record, Rio de Janeiro,
durante os anos 70.
[4] Da canção “Dawn” (Pinder), do álbum Days
of Future Passed, 1967, Deram/Decca.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Porto 2010; (2) Fotógrafo desconhecido, Póvoa de Varzim 21 de Agosto 1976.
Sem comentários:
Enviar um comentário