Os efeitos da batedeira fizeram-se sentir por
aproximadamente três dias, depois disso os sorrisos murcharam e acabaram-se os
refrescos, a melancia, e as cigarettes
com que fomos hospitaleiramente acolhidos em casa da família Joαηηoμ nessa primogénita manhã
em Atenas. Sala de estar de estores subidos para nos receber e lá fora o dia,
para já rosado como os cubos de melancia gelados que nos servem, anuncia-se
quente. Para os visitantes os melhores copos do louceiro onde foi vertido uma
espécie de mazagran frappé que nos revitalizou a dormência de uma noite
mal amanhada. Uvas.
A mãe do
Nikolas é uma senhora muito simpática e a total incapacidade em dizer uma para
a caixa em inglês é submergida pela transbordante sensação que transmite de ser
capaz de acolher num abraço o mundo inteiro, isto apesar da neurose de guerra
de que sofre e a que todos se referem com naturalidade – durante a segunda guerra mundial os gregos
foram bem maltratados pelos alemães que ocuparam o país e tudo quanto era casa
de família em Atenas, obrigando os proprietários a dormir na cozinha e a assumir
o papel de seus criados. Quanto às mulheres da família estamos falados, pois as
irmãs do Nikolas são bastante feiosas.
O pai, por outro lado, tem uma loja de souvenirs no
bairro Monastiriki, um local do centro antigo de Atenas que faz lembrar a Rua
Cimo de Vila, no Porto, e acomoda uma feira-da-ladra permanente. É para aí que,
já passava das nove da manhã, nos dirigimos, deixando as mochilas à guarda do
ramo feminino dos Joαηηoμ.
Na loja, atestada de azulejos e reproduções, com a costura do molde, do
Discóbolo, da Vitória de Samotrácia, da Vénus de Milo, das Cariátides,
expõem-se alguns outros objectos que estariam melhor nas redondezas do
Vaticano. Mas a antiguidade também já foi há tanto tempo, quem irá dar conta ou
queixar-se destas pequenas incongruências?
Depois de
subida a porta de correr em chapa ondulada, o Sr. Joαηηoμ manda buscar-nos
cadeiras e refrescos e ali ficámos os dois sentados a um canto da loja como se
fossemos clientes especiais, sob a protecção das prateleiras onde deuses
laureados e ninfas engrinaldadas se repetem no laranja e negro das urnas gregas.
A recepção
triunfal não incluiu convite para dormir em casa dos novos amigos, pelo que, a
nosso pedido, Nikolas se ofereceu para nos acompanhar a uma agência de
estudantes, à procura de quarto. Achámos tudo muito caro e embora a quantia de
175 dracmas por pessoa (75 cêntimos, uns 7 euros por padrões de hoje) possa
parecer ridícula, era forçoso que mantivéssemos o cinto apertado. Decidimos
dormir ao ar livre e a decisão, juntamente com uns pés trucidados por um par de
botas de cano alto e um clima acima dos trinta graus, contribuiu para que me
arrastasse, descalço e deprimido, pelo cimento quente dos passeios de ruas que
não se consegue perceber quais são, pois tudo está escrito nuns caracteres que
nos fazem pasmar para as placas como para compêndios de matemática ou física!
E, depois, quase ninguém fala inglês ou francês.
Desistimos
de deambular num enorme jardim por trás do edifício do Parlamento onde
adormecemos sobre a relva, ao sol, depois de lançarmos o I Ching. A pergunta “o que fazer: continuar já viagem ou manter-nos
por aqui, a ver no que dá?” obteve como resposta um hexagrama que nos diz que o
mais sensato é estarmos quietinhos. Assim ficámos, até que um polícia nos
acordou e mandou mudar de poiso pois é proibido pisar a relva.
O sono
dissipou as mágoas e acabámos a tarde a escrever postais para casa e para os
amigos num pequeno café com vista para o templo de Hefesto, o que não deixa de
ter alguma carga simbólica, pois, para além de deus do fogo e ferreiro dos
deuses, Hefesto era manco, que é como eu estou à custa das bolhas que me
abrasam os pés e coxeiam o andar. Mas agora não penso nisso, a frescura do chão
de mosaico hidráulico do café é um bálsamo para a sola dos pés e o ambiente
sossegado, em que o único som é o ruído das peças de dominó a serem movidas no
mármore das mesas, potencia o efeito calmante. Ao fundo do cenário, sobre o
enorme penhasco escalavrado, a Acrópole espera por nós, pois é aí que decidimos
ir dormir esta noite.
Esta ideia
romântica de nos acostarmos à protecção marmoreada e milenar do Partenon ou,
quiçá, das colunas femininas do Erecteion, evaporou-se quando, esbaforidos,
chegámos ao cume da colina pedregosa onde a Acrópole foi edificada: o acesso a
tudo aquilo é negado por uma alta e sólida vedação em metal! Raios partam o
progresso!
Não importa,
ficaremos o mais próximo do que é humanamente possível da morada dos antigos senhores de Atenas. Do lado de
fora da vedação o terreno está plantado de pinheiros mansos e o chão atapetado
de caruma. Estendemos os nossos sacos-camas e deitámo-nos na noite cálida,
escutando o som da música e os ruídos amortecidos que chegam da cidade lá em baixo. Fumámos um
cigarro em silêncio e os olhos começam a pesar-me de bem-estar.
Curto
repouso e encanto! Dois guardas, do lado de dentro da vedação, deram pela nossa
presença e varrem-nos com potentes lanternas. Ficamos à espera de tudo: um
tiro, prisão por vagabundagem, expulsão do país... Nada disso, foram-se sem
dizer palavra. Voltaram pouco depois, repetiram a iluminação anterior e
desapareceram. Acho que tinham decidido que não constituíamos perigo imediato
para o património da humanidade e que nos podiam deixar dormir em paz. Mas
dormir aqui é mais difícil do que o suposto, agora foram os mosquitos que nos
descobriram. Tento esquecer o calor (os sacos-camas, tal como as botas e o
kispo são quentes de mais para este clima), tento abstrair-me dos zumbidos:
aqui não é como no meu quarto do Porto, onde podia levantar-me e colar
mosquitos à parede numa guerra de almofadas!
© Fotografia de Pedro Serrano, Acrópole (Atenas), Grécia 2014.
Sem comentários:
Enviar um comentário