09 março 2015

NÃO VENHAS TARDE: 3. ATRAVÉS DO UNIVERSO

A 14 de Fevereiro de 1968 os Beatles partiram para a Índia, em parte arrastados por George Harrison que já por lá estivera no ano anterior e que, há algum tempo a essa parte, se interessava quer pela filosofia e religião hindus quer, mais profissionalmente, pela sofisticada música indiana. A primeira vez que essa influência se fez sentir pode ser apreciada na cítara usada na canção “Norwegian Wood”[1] e, posteriormente, de modo mais marcado em dois discos que, curiosamente, antecederam a viagem: Revolver, de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, de 1967.
Quanto à viagem dos quatros rapazes (as idades oscilavam entre os 25 e os 28 anos) para Rishikesh, uma localidade no sopé dos Himalaias e lambida pelas águas do Ganges, a sua finalidade prendia-se maioritariamente com a procura de uma espiritualidade e de um tipo de conhecimento diferente do vigente nas alienadas sociedades ocidentais; uma coisa que perdurasse. Nesta viagem de 1968 a música era um fito muito longínquo e George Harrison não se fez mesmo acompanhar de nenhum instrumento! Mas o ambiente indiano foi propício à fecundidade musical do grupo e, apesar de terem permanecido no país apenas dois meses, as canções que compuseram por lá (quase todas as trinta músicas do duplo Beatles–White Album, de 1968, e ainda algumas das canções de Abbey Road, de 1969) e a onda de influência, musical e existencial, que essa experiência desencadeou ainda hoje vibram através do Universo...
Eu que o diga, que acabei por ir lá parar na peugada disto tudo. Em Fevereiro de 1968 tinha catorze anos e não podia fazer mais do que babar-me de deslumbramento com os caminhos que os meus músicos e mentores preferidos exploravam, com os ecos, amplificados e distorcidos pelo mito, que nos chegavam à pasmacenta cidade do Porto. Mas oito anos volvidos, em 1976, já decidia por mim, mesmo que isso pudesse significar uma ruptura familiar, e a esse exaltar do Oriente que os Beatles tão bem encarnaram juntou-se o conhecimento que outras explorações da minha curiosidade trouxeram.
Desde que me lembro, e por determinantes que não consigo precisar, o Oriente exerceu um tremendo fascínio sobre mim, a Índia em particular e, na infância, a minha imaginação reagia com fervor a cenários de serpentes encantadas, faquires que acomodavam a sesta em camas de pregos, templos abandonados cuja única função era a de servir de fundo à deambulação listrada de um tigre solitário. Mas, nesses tempos, tudo quanto contribuía para o alimentar da minha fogueira eram as tiras de texto quase anedóticas dos almanaques, um ou outro romance de aventuras juvenil e as páginas ilustradas do National Geographic Magazine. Nesses dias eu era muito pequeno e vivia num local demasiado isolado para ter acesso à chama que se acendia em torno do Levante e do Oriente, que crescia nas vozes dos americanos e ingleses que se exilavam na Grécia e em Marrocos (como Lawrence Durrel e Paul Bowles) ou naqueles que os visitavam com vagar e teciam as suas crónicas e escritos embebidos pelo pulsar dessas latitudes, como Henry Miller, Truman Capote, Allen Ginsberg ou Jack Kerouac.
George Harrison, Paul McCartney, John Lennon, Donovan, Índia 1968.
Depois, vieram os anos 60 e explodiu o tal novo ressurgimento da Índia de que os Beatles, mas não só, foram um dos principais culpados. É que eles, não convém esquecê-lo, na sua curiosidade e vontade de experimentação, beberam nessas fontes de onde vinha o rock and roll e a cultura que lhe estava associada. E a famosa viagem de Kerouac através do Estados Unidos, que explodia em On the Road[2], tinha antecedentes...
É cíclica esta atracção do frenético Ocidente pelo imperturbável Oriente. No final do século XIX, início do século XX, houve febre semelhante e a pintura impressionista, por exemplo, foi moldada na influência da pintura japonesa, assim como são impressionadas pelo Oriente a literatura e a poesia europeias e, apenas citando exemplos caseiros, podemos encontrar vestígios do velho fascínio em Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Eça de Queiroz, esse, fez e desfez malas na poeira do Levante, chegou a espetar as estacas de um pavilhão japonês numa quinta dos Olivais com vista para o Tejo...
Assim, quando naquele escritório me zanguei com o meu pai, não foi só por me sentir traído na promessa que fizera de me financiar uma viagem de fim de curso onde eu quisesse. Sentia-me, também, atrasado, sufocado, preso num cantinho onde os dias se repetiam quando tudo estava a acontecer lá fora! Porra, será que era assim tão difícil de entender? E agora, que me preparava mentalmente para partir com a consciência de ir já agarrado ao rabo do cometa, ainda tinha de me debater com detalhes comezinhos como estes! Dinheiro?!
O problema é que, por barato que fosse o Oriente e por esquálidas que quiséssemos as nossas comodidades de viajantes, tudo aquilo ia custar algum dinheiro. O Rui e eu tínhamos calculado, por alto e para quatro meses de viagem, um orçamento individual de 50 contos (250 euros), o que, em termos actuais, corresponderia a qualquer coisa como 1.800 euros. Mas, para já, tudo quanto possuía era um bela nota verde de 100 dólares (14 contos) que o meu tio Mário oferecera pelo meu recente sucesso académico. A isto poderia somar os 7 contos oficiais do meu pai – ficavam ainda em falta cerca de 30 contos.
Bati à porta da família, mas como toda a gente ia estando a par do conflito e das minhas ideias loucas, levei delicadamente com os pés; as recusas irritantemente temperadas com um futurista “um dia ainda me hás-de agradecer...”.
Acabei por conseguir o financiamento em falta junto de alguns amigos que admiravam o projecto e o primeiro dinheiro que, como médico, ganhei no ano seguinte foi para pagar, a prestações, essas dívidas.
Conseguido o dinheiro, o choque seguinte com a realidade foi transformar esse, já pouco, capital em divisas que fossem convertíveis em todos os países que iríamos atravessar, isto é: dólares americanos. O escudo estava, em termos de cotação, pelas ruas da amargura e os próprios bancos portugueses nos demonstraram isso na troca da pequena fatia que podíamos cambiar legalmente para a transformar em traveller’s checks, uma forma relativamente segura de transportar dinheiro numa época pré cartões de crédito ou de débito e em que máquinas de levantamento automático de dinheiro eram um sonho tão de ficção científica como a Internet ou os telemóveis. Os traveller’s checks, como o nome sugere, eram cheques emitidos por instituições financeiras americanas (habitualmente o American Express ou o Thomas Cook) que podiam ser trocados por dinheiro em todas as agências destas instituições ou, até, aceites como forma de pagamento directo por muitos estabelecimentos à volta do mundo. Ainda mesmo antes de tirarmos os pés do Porto o nosso dinheiro diminuiu a olhos vistos em taxas e depreciações.
On The Road, capa da 1.ª edição portuguesa, 1960.
E, atente-se, este dinheiro legalmente cambiado era apenas uma oitava parte dos nossos escudos a converter, excepção feita à abençoada nota verde do meu tio Mário. Quem nos iria trocar o resto num Portugal onde exportar escudos ou divisas era um crime? Batemos a uma série de portas, mais ou menos clandestinas, mas as comissões eram tão exorbitantes e as condições de segurança da própria transação tão duvidosas que acabámos por decidir enfiar os nossos grossos rolos de notas em escudos no miolo vazio dos tubos de alumínio da estrutura das duas enormes mochilas cor de laranja que nos emprestaram para a viagem. Quando chegássemos a Londres, a nossa primeira paragem a seguir a Lisboa, trocaríamos aquilo tudo por dólares, libras esterlinas, francos suíços ou  cheques de viagem, conforme o que se mostrasse mais vantajoso cambialmente falando.
“Londres?!”, admirar-se-á o leitor mais atento a um fio condutor geograficamente impecável, “então não é para Sul que eles vão?”
Certo. Vamos sempre para Sul e para Leste, mas achámos não valer a pena perder tempo com a Europa mais imediata, ajuizámos ser um desperdício de dias, de dinheiro e de energia rolarmos para sul pela Espanha, pela França, pela Itália, Jugoslávia… Ou, trajecto mais interessante mas praticamente inviável, atravessarmos para África em Algeciras e atingirmos o Irão através do Iraque depois de atravessar Marrocos, a Argélia, a Líbia, o Egipto...
Assim, apagando a Europa do mapa, apanharemos um avião para Londres e, daí, um voo para Atenas onde, na prática, começa a rota do Oriente. É que não há voos directos de Portugal para a Grécia, por isso a Inglaterra. Para além do mais, há umas compras imprescindíveis que temos de fazer em Londres. 




[1] Álbum Rubber Soul, comercializado em Inglaterra em dezembro de 1965, EMI Records.
[2] Publicado em1957. Editado em Portugal, com o título Pela Estrada Fora, pela Ulisseia em 1960.

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