Um dia do início do Verão de 1976 na cidade do Porto, em hora avançada
da tarde. Ao volante de um Fiat 128, azul-escuro, atravesso a cerca do Hospital
de S. João com o intuito de espreitar a classificação obtida no último exame da
última cadeira que me separa de um diploma de médico.
Naquele carro, nenhum dos dois passageiros experimenta apreensão quanto
ao eventual resultado e nem pela cabeça nos passa chumbar naquela disciplina,
Oftalmologia, se não me enganam os anos entretanto passados. Mas essa previsão
de sucesso não se reflecte no silêncio em que estaciono o carro e nos dirigimos
à entrada de um dos pavilhões pré-fabricados que, sob a pressão da
democratização do ensino universitário, começam a juncar os frondosos e amplos
jardins do hospital, onde, ano lectivo findo e pares de namorados desaparecidos
da relva, os pássaros se entretêm ruidosamente a saudar o fim do dia, alheios a
quem passa.
Mudos, observamos as nossas gémeas e excelentes classificações e, sem uma
palavra, regressamos ao carro. Aquela extensa lista de nomes, autenticada pela
assinatura de um professor, significa um facto a que não se pode reverter a
nódoa: a partir desse momento, para todo o sempre, seremos médicos; os seis
anos de Faculdade tinham chegado ao fim e essa consciência vibra na minha
cabeça com a surdez e a insistência de um diapasão.
Sentado ao volante, olhando o parque de estacionamento deserto, sinto a
angústia tomar conta de mim e, mesmo sem olhar, pelo silêncio carregado como
chumbo que emana do banco ao lado, percebo que o mesmo se passa com o Juca.
– Agora é que estamos fodidos... – desabafei, como se, encostado a uma
parede, anunciasse a vista do pelotão de execução.
– Vamos mas é embora daqui... – rouquejou ele com o incómodo de quem dá
conta que se deixou esquecer num cemitério após o anoitecer.
Acendi um cigarro, encaixei por trás da orelha a madeixa de cabelo que
me caía sobre os óculos e arranquei em tubo de escape roufenho.
Imperturbável, a tarde de Verão transborda num poente esbarrondado e,
Circunvalação abaixo, apercebíamos tons de vermelho sangrando-se para os lados
do mar.
– E agora, que fazemos?
– Sei lá… – sugeriu ele.
– Podíamos passar pelo Piolho,
ver se está lá alguém e, depois, ir jantar a qualquer lado... que dizes?
Comemorar o desastre...? Mas primeiro tenho de passar por casa, prometi aos
meus velhos que dava notícias mal ficasse médico.
– Tá bem – concordou o Juca, arrastando o tom de frete tanto quanto eu,
mas que, lá no fundo, não se importava de passar por casa dos meus pais, pois
mantinha uma oculta e cerimoniosa simpatia pela minha irmã mais nova.
À noite, durante o jantar na Marina,
informei o Rui, que não se dera ainda ao incómodo de passar pela Faculdade, que
também ele passara na última cadeira e era tão médico como nós.
– Tiveste dezoito a Oftalmo, doutor...
– Dezoito!? Imagina quanto teríamos tirado se soubéssemos alguma coisa
daquela merda! – E, logo de seguida:
– Como é, sempre vamos?
– Vamos... – respondi sem hesitar, mas sentindo no estômago o frémito de
quem se compromete com o desconhecido.
Começámos, em volta do bolo de bolacha, a ventilar pormenores e
decidimos que partiríamos apenas em Setembro, pois tínhamos ideia vaga de que
as monções terminavam por essa altura e que a viagem seria melhor com um calor
menos húmido.
– Vamos ter de fazer uma porradaria de vacinas – lembrou ele, e
recomendou: – Vê se começas a tratar do graveto com o teu velho...
– Com isso não vai haver azar – retorqui, – há seis anos, para me picar,
prometeu que se me formasse sem chumbar nenhum ano me oferecia uma viagem de
curso onde eu quisesse...
Mas o que o meu pai nunca imaginou foi que a “viagem de curso onde eu
quisesse” era uma jornada à Índia, ainda por cima por terra; um Overland to India como estava então na
moda, especialmente desde que os Beatles se tinham mandado para lá. E, tomando
como padrão esse marco famoso, já lá iríamos chegar, se o conseguíssemos, oito
anos atrasados!
À imagem dos meus colegas de licenciatura, alguns deles ínclitos filhos
de colegas de consultório, o meu pai contava que lhe fosse pedir fundos para
uma passeata de duas ou três semanas por Itália, pela Suíça, pela Escandinávia,
em termos de máximo atrevimento geográfico pelo Canadá ou os Estados Unidos...
Assim, quando lhe soprei a sucinta comunicação da decisão de ir à Índia, mais
ou menos a pé, e gastar nisso os cinco meses que me separavam do início da vida
clínica, ele passou-se:
– À Índia! Por terra?! Tu saberás o que estás a dizer?! Sabes onde
aquilo é? Já viste no globo, ou num mapa, a distância e os países que terias de
atravessar? Tens uma noção do reboliço que vai por aquelas bandas? Na maior
parte desses lugares não existe sequer uma embaixada portuguesa!
Com a frugal leveza dos vinte e três anos assegurei-lhe serenamente que
sim, que sabia muito bem onde me estava a meter: que cerca de doze mil km nada
eram para mim; que a circunstância de a Grécia e a Turquia estarem de candeias
às avessas; o Afeganistão ser um covil de bandidos; e o Paquistão estar, mais
ou menos, em guerra civil não era coisa que atrapalhasse os nossos planos...
O meu pai era um cirurgião com uma grande paixão pela História,
interesse sobretudo alimentado pelos países da orla do Mediterrâneo onde
nasceram as grandes civilizações, como a egípcia e a grega. Todos os meses
chegava a nossa casa um exemplar do Courier
da Unesco e mantinha, bem rodados e isentos de pó, um globo terrestre e um
enorme atlas-mundi na estante do escritório; estava bem a par de como o mundo
se movia em torno do seu eixo naquela segunda metade da década de 70.
Do que ele não estava à espera é que, sem antes ter demonstrado um pingo
de interesse por História ou Geografia e tendo por única experiência de viagem
uma ida, em excursão semanal, com a família, a Londres, um filho seu se
resolvesse a palmilhar aqueles caminhos pedregosos e inseguros. No seu
desespero por me dissuadir daquilo que entendia ser um capricho sazonal cometeu
um erro fatal: ao negar o apoio financeiro, que teria todo o prazer em fornecer
se o meu destino fosse outro que não a Ásia, foi como se entalasse o meu sonho.
E quando lhe recordei a promessa de financiamento, rematou:
– Dou-te exactamente o dinheiro com que se pode sair do país, nem mais
nem menos.
Estávamos nos anos em brasa da Revolução dos Cravos e, tentando estancar
a hemorragia de capitais para o exterior, o Governo determinara como plafond máximo de exportação de divisas
os sete contos de réis (cerca de 35 euros), quantia rasamente suficiente, à
época, para ir passar uma semana de fish
and chips a Londres ou regressar de Paris com pouco mais do que um vinil do
Leo Ferré e uma torre Eiffel em filigrana dourada. Isto é: aquela generosidade pela
bitola oficial, obrigatoriamente averbada nos passaportes, cortava-me
totalmente as asas. Fiquei furioso, senti-me traído, e, antes de sair do
escritório, atirei:
– Pois saiba que hei-de ir de qualquer maneira...
– Oh, menino, não hás-de passar da Grécia – ouvi-o ainda amaldiçoar.
No hall, dei com a minha mãe que, com cara de caso, planava por ali como
um abutre sobre as Torres do Silêncio
de Bombaim.
– Que se passa...?
– Nada, – lati – apenas gente que quando chega a hora da verdade não
cumpre o que prometeu... – Azedo,
informei ainda:
– Vou sair, não esperem por mim para jantar...
– Não venhas tarde – suplicou, um ar de sexta-feira santa
espraiando-se-lhe nas feições.
– Nunca se sabe... – respondi, misterioso, – talvez não volte mais.
© Fotografia de Pedro Serrano, Porto, 2010.
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