A manhã e a crua realidade obrigaram-nos a somar
uma quarta regra às três orientações gerais de que falei ontem. Vamos ter de
economizar o mais possível na viagem, pelo menos até ficarmos com uma noção de
quanto custa a vida em cada um dos países que vamos atravessar: Grécia,
Turquia, Irão, Afeganistão, Paquistão e Índia. E há que contar ainda com
imprevistos, pois em, pelo menos, três destes países não existe embaixada ou
consulado português que nos possa socorrer em hora de aflição.
Estamos por nossa conta e, chegada a hora da
verdade, ninguém mostra simpatia especial pela situação portuguesa e pela nossa
revolução floral: o escudo está de rastos e na conversão dos rolos de notas
para dólares o emagrecimento em desvalorizações, taxas e comissões foi de
estarrecer. Para agravar este panorama, o nosso dinheiro vai voltar a ter de
ser reconvertido em dracmas gregos, liras turcas, riais persas, afeganis e duas
diferentes espécies de rupias: paquistanesas e indianas.
Gatwick fica a cerca de 50 km de Londres e, depois
de deixarmos as mochilas num cacifo do aeroporto, apanhámos um comboio para lá
chegar. Temos o dia inteiro para gastar, o nosso voo para Atenas é só à
meia-noite.
O Verão aproxima-se do fim, Londres está pincelada
a amarelo, vermelho e verde, pois há grandes jardins e árvores por todo o lado.
O dia está morno e, nos parques, esquilos fazem crepitar os tapetes de folhas e
marinham pelas árvores acima, indiferentes a quem apanha um sopro de sol nos
relvados. Almoçámos (mal e caro) no Soho e demos uma enjoada volta pela famosa
Carnaby Street, que parece uma versão multiplicada em espelho dos Porfírios!
Perto do British Museum encontrámos, numas ruas
transversais silenciosas, as tais livrarias de que trazíamos referência:
comprámos três versões do I Ching, o Overland to India and Australia e um
irresistível livrinho com ilustrações de caligrafia religiosa islâmica, em que
a beleza da escrita é, ela própria, um tributo ao divino. Numa papelaria de
comer e chorar por mais esperavam por nós os cadernos de capa dura onde vamos
registar os nossos dias; o meu é da marca Challenge
e a capa é do azul-prússia que se ouve dizer ser o céu do Sul.
À hora do jantar regressámos ao aeroporto e no duty free
fizemos alguns investimentos: dois relógios Timex e
dois porta-moedas horrorosos, ilustrados em tons berrantes com a Torre de
Londres e o Big Ben, bens que tencionamos revender por bom preço no Paquistão
ou assim, de modo a atenuar o que perdemos nos câmbios. Pobres portugueses
espertinhos que não sonham estar a dirigir-se a paragens onde se acocoram sobre
os calcanhares, estribados na longa tradição da necessidade, da paciência e da
filosofia de nunca deixar escapar um negócio, os comerciantes mais experientes
e dotados do universo.
Chamam para embarque o voo da British Airways para
Atenas. Lá vamos nós, crivados de vacinas e advertências, com as mochilas a
aumentar perigosamente de peso, sem um mapa, sem máquina fotográfica e sem um
plano concreto de viagem – destinação Índia, o resto se verá!
Pelos riscos de água tracejados na vigia do Rui
percebe-se que lá fora chove a potes e o panorama piorou sobre a Alemanha onde
atravessámos, sem sinais de conseguir sair, uma tempestade que inclui
relâmpagos e ventania batida de água, algo bastante assustador àquela altitude.
O avião aguenta-se mal, sacoleja e enfrenta a tormenta penosamente no mais
completo breu. Há pessoas a correr para os quartos de banho, em desrespeito
pelo amarelo nauseado do fasten seatbelts,
que ainda não se apagou desde Londres. Outros preferem aproveitar o facto de o
avião ir meio-vazio e deitam-se, usando vários assentos como leito.
Vou sentado na coxia e acabo por meter conversa com
um grego que vai sentado no outro lado do corredor e que também não parece
muito incomodado com os sobressaltos. De dicionário na mão, após partilharmos
um cigarro, ele tenta fazer-se entender e transmitir-me de forma adequada um
pedido: uma das malas que transporta contém uma batedeira eléctrica comprada em
Inglaterra, o grande sonho da mãe. Pelos vistos as alfândegas gregas são
temíveis para os nacionais, mas permissivas com os turistas. Será que eu não me
importaria...? “Claro”, respondo, que posso eu sentir-me se não contente por
ser intermediário na realização de um sonho helénico? O Rui já dorme, encostado
à sua janela; mudo de lugar e estendo-me em três assentos duas filas mais
atrás. Lá fora a tempestade acalmou e ainda nos sobram duas horas de voo.
Nikolas sacudiu-me delicadamente quando estávamos a
descer para Atenas; espreito pela vigia: a noite está linda e o aterrar foi
suavíssimo.
Encantados com o convite, seguimos para casa de
Nikolas como se fizéssemos parte do clã que o foi esperar ao aeroporto e, para
isso, fomos obrigados a apanhar dois táxis. À base de grego e sorrisos os pais
de Nikolas tentam explicar como nos estão eternamente agradecidos por termos
feito entrar a batedeira no país. Ora essa, não custou nada, nem sequer me abriram a mala. São seis da manhã e
pela janela do táxi vejo, entusiasmado, o sol a tornar nítido o dorso das
montanhas. Sou o único a reparar em tal trivialidade e, embora péssimo aluno no
liceu em quase todas as cadeiras – incluindo História – sinto um fundo de
emoção por estar em solo grego, como se estivesse a ver locais onde foi rodado
um filme famoso. Mas à minha volta todos aqueles Áticos vão entretidos a falar
pelos cotovelos e a saudar o regresso do electrificado filho pródigo.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Março 2015; (2); Grécia, 2014.
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