05 março 2015

NÃO VENHAS TARDE: 2. ANCORADOS

O verdadeiro nome do Piolho é Café Âncora d’Ouro, mas ninguém o designa, fosse nos anos 70 do século XX ou hoje em dia, por esse nome. Acresce que o estabelecimento não possui nenhuma das características marítimas que o nome oficial deixa supor.
Para começar, o Piolho fica distante de qualquer linha d’água, está situado no centro da cidade, numa das esquinas de uma praça que também não se chama assim mas a que toda a gente se refere como Praça dos Leões; equidistante da Faculdade de Ciências e da Faculdade de Letras, monos arquitectónicos de paredes tão enegrecidas e ar tão extinto como os fundilhos de um limpa-chaminés. Depois, no interior do café, para além de uma âncora em baixo-relevo no espaldar das cadeiras, nada mais há que recorde o mar, sejam cordas com nós, papagaios num poleiro ou conchas a servir de cinzeiro.
Tal como hoje, já nesses há mais de trinta e cinco anos a que me refiro o interior se assemelhava mais a um cemitério do que ao Licorne, tantas eram as placas de mármore comemorando os milhares de cus universitários que vegetaram por aquelas mesas ao longo dos anos 40, 50 e 60 do século anterior; placas que, enquanto aguardava alguém ou curtia o tédio do mais profundo spleen universitário, me entretinha a decifrar com náusea.
E foi a uma dessas mesas de tampo frio, sempre que possível uma das do fundo do café, encastrada sob as escadas em caracol que conduziam à sala de estudo do andar de cima, que quase toda a nossa viagem foi gizada e revelada, incluindo os percalços causados pela birra do meu pai e as estratégias para os ultrapassar.
Nessa década de 70 toda a movida do Porto – diria do norte do país – passava por aquele café, o qual funcionava como ponto de encontro e centrifugação para todas as conspirações políticas pré-revolução de Abril, para todos os encontros amorosos a ser ou a devir, para todos os intelectuais e artistas em potência ou já potenciados, ou para aqueles que, como eu e um certo tipo de amigos, queriam somente observar o carrossel e, de quando em quando, dar uma volta numa das girafas.
Nunca alcancei, nesses dias ninguém se ralava com essas ruminações, limitávamo-nos a aceitar o que aparecia, qual a razão da fama daquele café e não de outro qualquer. Havia centenas de cafés no Porto, alguns com espessa patine mítica, mas nada que se pudesse comparar com este. Exactamente ao lado do Piolho, paredes-meias, pode dizer-se, havia um outro, teoricamente tão apto como o Âncora de Ouro mas sempre às moscas e apenas frequentado pelos reformados e outros escarradores de passeio ocasionais que constituíam a clientela usual dos cafés em torno da Praça dos Leões.
Essa aura mítica perdeu-se, o Piolho ainda lá está, alguns dos empregados envelheceram dentro daqueles muros, mas agora o estabelecimento é basicamente um café em crise como os outros e revisitá-lo em peregrinação é como insistir em encomendar missas pela intenção de almas a quem já não conseguimos relembrar as feições. 
Ah! mas nesses dias não havia encontro que não passasse por ali, não havia estrangeiro que chegado ao Porto, vomitado por um liceu de província para os bancos da Universidade, não fosse aportar àquele molhe de espuma encardida.
Para me defender de uma possível acusação de exagero saudoso, para que olhos do presente possam ajuizar do caso especial que era aquele café, da nata estelar que por ali se movimentava usando os espelhos que revestem as paredes como aferidor de imagem, eis, ao correr da pena, alguns dos personagens que se cruzaram comigo pela sala ou, no Verão, pela esplanada do Piolho. Comecemos pela mais nobre das artes e, passando pela literatura e pelo cinema, resvalemos, pela ordem alfabética dos nomeados, até aos baixios da política: António Pinho Vargas, Carlos Tê, Jorge Lima Barreto, Rui Reininho, Rui Veloso, Zé Nogueira; Francisco Vale, Jorge Sousa Braga, Manuel António Pina; João Botelho (na altura famoso pela qualidade das companhias femininas); Carlos Magno, Pacheco Pereira. Deixo para cauda desta linhagem Artur la Gauche, um personagem que, sem se ter distinguido em nenhuma área do conhecimento ou das artes, fez escola pela pose dos seus cortes de cabelo, chapéus, casacos de cabedal e correntes, o todo bastante decalcado dos cenários de Berlim segundo as apropriações feitas por Lou Reed ou David Bowie. O Arturinho, como era desdenhosamente conhecido, ficou também famoso pelas ideias enfumaradas e desaparecimentos misteriosos para locais de culto no mundo (estaria em Nova York, na Factory do Warhol; voara até Amesterdão, a buscar ácidos; enjoava, num dromedário, em busca de kif...), ausências profusamente publicitadas enquanto ele roía as unhas num apartamento do centro do Porto até acondicionar o tempo suficiente para ser convincente o regresso numa nova metamorfose.
Toda esta corte de famosos a ser era, como risonhamente sempre acontece, entremeada de suficientes musas e candidatas a musa que faziam o seu debute nas cadeiras do Piolho e expunham o seu brilho na passerelle de cimento quadriculado entre as mesas da esplanada. Discretamente, fornecendo material de sonho a quase todos, alguns dealers estavam disponíveis para, por monossílabos ou linguagem gestual, anunciar a chegada de novidades e comerciar os seus produtos acondicionados em papel de prata. Os mais carismáticos de entre eles, confraternizavam mesmo com algumas franjas da clientela.
Sim, o Âncora de Ouro podia não ser um barco, mas tinha algo de navio permanentemente fundeado, sempre pronto a partir ou a chegar, trazendo e levando gente, mercadorias e especiarias...
Extravasando das personalidades, borbulhavam as tendências e de tudo ali se podia encontrar em laboratório: o ménage à trois e a quarta Internacional; as feministas mais greladas; as nuances sexuais mais escorregadias; os aromas mais enjoativos; o teatro mais vanguardista, as actrizes mais convencidas; a filosofia mais niilista, o pensamento mais estruturalista (oh, já estavas desactualizado: mais pós-neo-estruturalista); os cultores da completa ausência de capacidade técnica como nova estética musical; e, imperdoável!, ia esquecendo, a semiótica mais seminal, brochada e encaixada casualmente na axila ou, com o título a revelar-se, espreitando do bolso da samarra. Havia até um tipo, trajando uma famosa gabardina Burberry de verão e de inverno, que ensaiava o suicídio pelo sono, o que consistia, com a celestial ajuda de hipnóticos, em dormir cada vez mais horas e deixar cada vez menos a cama, mas sem a maçada de ter de produzir algo como os sete volumes do À La Recherche[1].
Não alcançaria o subgrupo ou seria sequer uma tendência, mas, no meio do caldeirão, podia também ouvir-se a esparsa voz daqueles que ansiavam pela viagem iniciática e tentavam alcançar o sul do Oriente por terra, não por embirrarem com o Vasco da Gama, mas porque as longas viagens e a procura do Oriente se confundiam com a procura de si próprio. Claro que, modernos e ignorantes como éramos, garantiríamos a pés juntos que a tendência se teria iniciado nos anos 50 do século XX com os Beatniks e que, nessa esteira, os Beatles teriam dado uma dimensão viral ao fenómeno...  
Como é natural, eu e o meu amigo Rui, cada um interessado na viagem por motivos distintos, mas com suficiente denominador comum para a imaginarmos fazer juntos, seguíamos com toda a atenção as novas dos viajantes portuenses para Levante. Mas, ao longo dos verões de 1974 a 1976, esse era um terreno desencorajador. Os poucos que víamos atrever-se nessa direcção regressavam pouco depois ou porque  a carrinha Volkswagen pão-de-forma se tinha avariado e não havia cachimbos para o distribuidor na Turquia, ou porque tinham sofrido dissabores com vistos nas fronteiras ou, mais humilhante ainda, porque tinham sido desbaratados por vómitos e diarreias mal deixaram o conforto da comida peninsular! E cada vez que via um desses viajantes cruzar a soleira do Piolho, de ar cabisbaixo e olheiras fundas, ouvia em fundo a frase reacionária e profética do meu pai:
– Oh, menino, nunca hás-de passar da Grécia...


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Fotógrafo desconhecido, Porto; (2) Fotógrafo desconhecido, Porto, 1975; (3) Pedro Serrano, Porto, 2014.



[1] À La Recherche du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido), de Marcel Proust, edição portuguesa na Relógio d’Água (tradução de Pedro Tamen), 2003/2004.

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