O verdadeiro
nome do Piolho é Café Âncora d’Ouro,
mas ninguém o designa, fosse nos anos 70 do século XX ou hoje em dia, por esse
nome. Acresce que o estabelecimento não possui nenhuma das características
marítimas que o nome oficial deixa supor.
Para
começar, o Piolho fica distante de
qualquer linha d’água, está situado no centro da cidade, numa das esquinas de
uma praça que também não se chama assim mas a que toda a gente se refere como Praça
dos Leões; equidistante da Faculdade de Ciências e da Faculdade de Letras, monos
arquitectónicos de paredes tão enegrecidas e ar tão extinto como os fundilhos
de um limpa-chaminés. Depois, no interior do café, para além de uma âncora em
baixo-relevo no espaldar das cadeiras, nada mais há que recorde o mar, sejam
cordas com nós, papagaios num poleiro ou conchas a servir de cinzeiro.
Tal
como hoje, já nesses há mais de trinta e cinco anos a que me refiro o interior se
assemelhava mais a um cemitério do que ao Licorne,
tantas eram as placas de mármore comemorando os milhares de cus universitários que
vegetaram por aquelas mesas ao longo dos anos 40, 50 e 60 do século anterior;
placas que, enquanto aguardava alguém ou curtia o tédio do mais profundo spleen universitário, me entretinha a
decifrar com náusea.
E
foi a uma dessas mesas de tampo frio, sempre que possível uma das do fundo do
café, encastrada sob as escadas em caracol que conduziam à sala de estudo do
andar de cima, que quase toda a nossa viagem foi gizada e revelada, incluindo
os percalços causados pela birra do meu pai e as estratégias para os
ultrapassar.
Nessa
década de 70 toda a movida do Porto – diria do norte do país – passava por
aquele café, o qual funcionava como ponto de encontro e centrifugação para
todas as conspirações políticas pré-revolução de Abril, para todos os encontros
amorosos a ser ou a devir, para todos os intelectuais e artistas em potência ou
já potenciados, ou para aqueles que, como eu e um certo tipo de amigos, queriam
somente observar o carrossel e, de quando em quando, dar uma volta numa das
girafas.
Nunca
alcancei, nesses dias ninguém se ralava com essas ruminações, limitávamo-nos a
aceitar o que aparecia, qual a razão da fama daquele café e não de outro
qualquer. Havia centenas de cafés no Porto, alguns com espessa patine mítica,
mas nada que se pudesse comparar com este. Exactamente ao lado do Piolho, paredes-meias, pode dizer-se,
havia um outro, teoricamente tão apto como o Âncora de Ouro mas sempre às
moscas e apenas frequentado pelos reformados e outros escarradores de passeio
ocasionais que constituíam a clientela usual dos
cafés em torno da Praça dos Leões.
Essa
aura mítica perdeu-se, o Piolho ainda
lá está, alguns dos empregados envelheceram dentro daqueles muros, mas agora o
estabelecimento é basicamente um café em crise como os outros e revisitá-lo em peregrinação
é como insistir em encomendar missas pela intenção de almas a quem já não
conseguimos relembrar as feições.
Ah!
mas nesses dias não havia encontro que não passasse por ali, não havia
estrangeiro que chegado ao Porto, vomitado por um liceu de província para os
bancos da Universidade, não fosse aportar àquele molhe de espuma encardida.
Toda
esta corte de famosos a ser era, como risonhamente sempre acontece, entremeada
de suficientes musas e candidatas a musa que faziam o seu debute nas cadeiras
do Piolho e expunham o seu brilho na passerelle de cimento quadriculado entre as mesas da
esplanada. Discretamente, fornecendo material de sonho a quase todos, alguns dealers estavam disponíveis para, por
monossílabos ou linguagem gestual, anunciar a chegada de novidades e comerciar
os seus produtos acondicionados em papel de prata. Os mais carismáticos de
entre eles, confraternizavam mesmo com algumas franjas da clientela.
Sim,
o Âncora de Ouro podia não ser um barco, mas tinha algo de navio
permanentemente fundeado, sempre pronto a partir ou a chegar, trazendo e
levando gente, mercadorias e especiarias...
Extravasando
das personalidades, borbulhavam as tendências e de tudo ali se podia encontrar
em laboratório: o ménage à trois e a quarta Internacional; as feministas mais
greladas; as nuances sexuais mais escorregadias; os aromas mais enjoativos; o
teatro mais vanguardista, as actrizes mais convencidas; a filosofia mais
niilista, o pensamento mais estruturalista (oh, já estavas desactualizado: mais
pós-neo-estruturalista); os cultores da completa ausência de capacidade técnica
como nova estética musical; e, imperdoável!, ia esquecendo, a semiótica mais
seminal, brochada e encaixada casualmente na axila ou, com o título a
revelar-se, espreitando do bolso da samarra. Havia até um tipo, trajando uma
famosa gabardina Burberry de verão e de inverno, que ensaiava o suicídio pelo
sono, o que consistia, com a celestial ajuda de hipnóticos, em dormir cada vez
mais horas e deixar cada vez menos a cama, mas sem a maçada de ter de produzir
algo como os sete volumes do À La
Recherche[1].
Não
alcançaria o subgrupo ou seria sequer uma tendência, mas, no meio do caldeirão,
podia também ouvir-se a esparsa voz daqueles que ansiavam pela viagem
iniciática e tentavam alcançar o sul do Oriente por terra, não por embirrarem
com o Vasco da Gama, mas porque as longas viagens e a procura do Oriente se
confundiam com a procura de si próprio. Claro que, modernos e ignorantes como
éramos, garantiríamos a pés juntos que a tendência se teria iniciado nos anos
50 do século XX com os Beatniks e
que, nessa esteira, os Beatles teriam dado uma dimensão viral ao
fenómeno...
Como
é natural, eu e o meu amigo Rui, cada um interessado na viagem por motivos distintos, mas com suficiente denominador comum
para a imaginarmos fazer juntos, seguíamos com toda a atenção as novas dos
viajantes portuenses para Levante. Mas, ao longo dos verões de 1974 a 1976,
esse era um terreno desencorajador. Os poucos que víamos atrever-se nessa
direcção regressavam pouco depois ou porque
a carrinha Volkswagen pão-de-forma se tinha avariado e não havia
cachimbos para o distribuidor na Turquia, ou porque tinham sofrido dissabores
com vistos nas fronteiras ou, mais humilhante ainda, porque tinham sido
desbaratados por vómitos e diarreias mal deixaram o conforto da comida
peninsular! E cada vez que via um desses viajantes cruzar a soleira do Piolho, de ar cabisbaixo e olheiras
fundas, ouvia em fundo a frase reacionária e profética do meu pai:
– Oh, menino, nunca
hás-de passar da Grécia...
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Fotógrafo desconhecido, Porto; (2) Fotógrafo desconhecido, Porto, 1975; (3) Pedro Serrano, Porto, 2014.
[1] À La
Recherche du Temps Perdu (Em Busca do
Tempo Perdido), de Marcel Proust, edição portuguesa na Relógio d’Água
(tradução de Pedro Tamen), 2003/2004.
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