07 fevereiro 2012

PROCUREM PELO 180


O texto que se segue tem por fim permitir ao leitor encontrar uma determinada pessoa em Bombaim, e foi escrito a pedido do interessado. A minha tarefa não é das mais breves, das mais fáceis, pois para além de Mumbai (antigamente conhecida por Bombaim) ter 25 milhões de habitantes, parto para esta aventura sem saber o nome dessa pessoa, ciente de que não tem endereço electrónico e desconhecedor da sua morada ou telefone... Uma missão que parece impossível, mas, à despedida, acabava eu de entrar no táxi preto e amarelo que mandou parar para nós, o tipo meteu a cabeça pela janela e, apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que venham visitar o Crawford Market e que procurem pelo 180...”
Actualmente rebaptizado como Mahatma Jyotiba Phule Mandai, o Crawford Market é um dos maiores mercados abastecedores de Bombaim e deve o seu nome a Athur Crawford, o primeiro comissário municipal inglês na Bombaim colonial dos anos de 1860. É aqui que todos os hotéis, restaurantes, vendedores de rua, se abastecem diariamente de frescos.
Resolvemos ir visitá-lo num fim de manhã abrasador e apenas saídos do táxi, que nos conduzira ao local por 40 rupias, dei comigo a olhar, de baixo para cima, para um descomunal edifício, cheio de telhadinhos, torres e claraboias, que recordava o cruzamento entre uma estação de caminho de ferro e uma abadia normanda! Entre nós, do lado de cá da rua, e a imensa mole, o trânsito louco e ininterrupto das várias avenidas e ruas que se cruzam no local. Olhávamos, impotentes, aquela torrente de carros, camionetas, motas, bicicletas, esperando que algum semáforo passasse a vermelho e propiciasse uma acalmia naquela massa ambulante de apitos quando surgiu do nada – é o que ainda hoje me parece – um homem que, na pose assumida de quem adivinhara todos os nossos problemas, gritou por sobre o caos rodoviário:
“Querem ir ao Crawford Market, não é? Venham, venham, eu levo-vos lá...”
E, dando-me a mão, avançou, resoluto, sobre o trânsito, arrastando-nos e erguendo, como um sinaleiro amador, a mão livre em sinal de paragem aos veículos que se iam abatendo e travando sobre nós por centímetros de proximidade. Tive apenas tempo de estender a minha mão solta à Ana e lá seguimos os três de mãos dadas, como náufragos atravessando pedrinhas sobre o rio tormentoso.
“Quem será?”, gritou a Ana por sobre o estrondear do trânsito que continuava a farejar-nos sem parar. Encolhi os ombros: eu sabia lá!
Atravessada a rua, o nosso benfeitor tornou-se mais nítido, quer aos nossos olhos quer nas suas intenções. Eu já me tinha apercebido que era um homem de pequena estatura, esse contraste realçava da coragem com que enfrentara o monstro rodoviário da travessia, mas reparava agora na sua camisa impecavelmente branca e engomada, no desenho vermelho pintado na testa, no cabelo grisalho cortado à escovinha, no sorriso bonacheirão, no inglês não impecável, mas desenrascadamente fluente:
“Agora vou-vos mostrar o mercado, trabalho aqui há 41 anos...”
Na Índia é assim, surge sempre alguém que quer ser nosso guia, que nos promete mostrar tudo e mais alguma coisa, mesmo quando o que queremos é estar em paz.
“Não, obrigado”, agradeci, “não precisamos...”
Mas ele não desistiu e, percebendo a nossa relutância em o adoptarmos, querendo aplacar possíveis receios, meteu a mão no bolso de trás das calças de tecido azul escuro, e escarrapachou perante os nossos olhos uma carteira na qual, num dos separadores de plástico transparente, se inseria um cartão com a sua sorridente fotografia debaixo de um dístico que rezava: Crawford Market Association.
“Estão a ver”, descrevia, apontando um número no cartão, “sou o número 180, posso mostrar-vos tudo o que quiserem; trabalho aqui há 41 anos. O que querem ver? Fruta? Posso mostrar-vos a fruta, os vegetais. Cães, gatos, tartarugas, pássaros, outros animais de estimação? Posso mostrar-vos onde estão... Especiarias? Sei onde são as lojas das melhores...”
Olhei a Ana, à procura de inspiração, e, antes de nos resignarmos totalmente, perguntei ainda, para acautelar surpresas que poderiam surgir à despedida:
“E quanto nos custa a visita guiada...?”
“Apenas 200 rupias”, respondeu ele, modesta e prontamente. E acrescentou: “não leva mais de uma hora...”
Começámos pelas frutas e pelos legumes: laranjas, limas, bananas, papaias, maçãs, mangas do Dubai, kiwis da Holanda, ananases, cenouras, figos, tudo quanto se possa imaginar, artisticamente empilhado em pequenas bancas por cima ou por trás das quais se empoleirava o vendedor e a sua balança de pratos de latão, a máquina de calcular electrónica. Ah! e aquelas maravilhosas romãs de cor única, não anémica como as nossas mas de um vermelho a roçar o apoplético... Eu tinha-me passeado entre pomares de romãzeiras daquelas em...
“Pomegranates from...”
“Afganisthan”, antecipei-me.
“...Kabul”, terminou ele a frase, olhando-me, espantado com a minha precisão geográfica. É que, apesar dos anos já escorridos, a memória de caminhar, em Kandahar, pelo meio de pomares de romãs, é inesquecível - aquela cor de couro rubro, contra o branco árido do terreno, quase queimava as retinas.
O 180 continuava a caminhar à nossa frente, orgulhoso, perante os vendedores de olho aceso, do seu casal de turistas, mostrando-nos um fruto estranho ou tentando que nos maravilhássemos de surpresa com o aroma de uma erva:
“Smell this...”, ordenou, esgaçando entre os dedos um delicado capim verde que aproximou das nossas narinas.
“Lemon grass”, respondi, mais rápido do que a Ana que ainda procurava na memória a palavra para a nossa conhecida Erva Príncipe ou Chá de Caxinde, como lhe preferem chamar os angolanos.
O homem, coitado, não cabia em si de deslumbramento perante brancos tão conhecedores de tudo quanto era fruto exótico, legume arrevesado, e lá lhe fomos explicando que nós, os portugueses, andávamos naquilo das especiarias e dos trópicos há umas centenas de anos...
Nessa comunhão pelo vegetal, o tipo começou a falar de si e do seu regime vegetariano, do seu yoga e do seu estilo de vida regrado:
“No meat, no drink, no smoke...”
“No nothing...?”, perguntei, mordaz, mas o homem não sintonizou a brejeirice.
“Duas destas, pela manhã”, disse, apontando uma cesta pejada de cenouras, “e o sangue fica completamente limpo...”
E, sem dúvida querendo partilhar essa sanguínea limpeza conosco, escolheu-nos duas belas cenouras que, por eu não ter moeda miúda à mão de semear, ele se encarregou de comprar fiado junto do vendedor.
Para além dos vegetais e das frutas (conhecia com tal profundidade as virtudes antioxidantes do açafrão que nos fez comprar duas caixas num vendedor certificado), outra coisa que o encantou foi a Ana e particularmente os seus olhos azuis, que gabava cada cem metros, e cuja figura lhe fazia lembrar uma das filhas. Para o provar, parou no meio da alameda dedicada aos animais de estimação e extraiu de novo a carteira do bolso de trás das calças, exibindo um novo separador de plástico onde a sua fotografia, à esquerda e à direita, era ladeada pela foto de uma sorridente moça. A que ele achava igualzinha à Ana era a moça da direita, professora, uma bonita rapariga classicamente indiana: cabelo negro, olhos negros, pele mate. Talvez que noutra reencarnação a professora tivesse olhos azuis ou a Ana cabelo liso...
Havíamos chegado a uma das extremidades do mercado e por essa latitude já ele nos perguntara o que fazíamos na vida, a nossa religião e quantos filhos tínhamos, parecendo bastante desapontado com o facto de só existir uma peça de fruta na nossa descendência.
“Indian, two billion!”, esclareceu-nos com os olhos a brilhar, “chinese, two billion point four”, o apontar veemente de indicador como que a sugerir que, mais dia menos dia, os amarelos não perderiam pela demora. Senti-me aliviado por não ter perguntado, nessa indagação de pormenores que os indianos adoram, quantos éramos nós em Portugal, uma vez que dez milhões deviam ser, mais ou menos, os tipos que andavam por ali, nos corredores do Crawford Market, a escolher rábanos.
De repente, cheirou mal, muito mal, um daqueles odores entre o podre e o adocicado e ele estacou, avisando:
“Ali não entro...”
Ali, era o canto do mercado onde se retalhava, pendurava e vendia a carne de vaca, uma dupla ofensa para um hindu e um vegetariano.
“Muçulmanos”, ajuntou, como se a crença dos talhantes fosse algo igualmente desprezível, “se quiserem ir ver, eu espero aqui...”
Não quisemos, o cheiro era insuportável e, como lhe expliquei, também jaziam vacas penduradas no nosso país.
Tínhamos, outra vez, chegado a uma das saídas principais do mercado, locais celebrados por fontes guarnecidas com estátuas de pedra multicolores, obra de Lockwood Kipling, pai do escritor Rudyard Kipling, autor de obras como Kim e O Livro da Selva.
Tentámos despedir-nos do nosso guia, cheguei mesmo a meter a mão no bolso, mas ele travou-me o gesto; queria ainda levar-nos a uma loja, numa das ruas adjacentes ao mercado, onde poderíamos encontrar, a preços imbatíveis, verdadeira pashmina, o termo que por ali se usa para designar aquilo que chamámos de caxemira. Como dizer que não a um tipo tão simpático, tão afável, tão razoável, que queria apenas ver-nos felizes e bem servidos, que nos garantia que o estabelecimento era já ao dobrar da esquina?
A loja era num primeiro andar de escada íngreme, uma coisa pequenina mas compactamente atulhada de colchas, echarpes, almofadas de seda, saris; mas a principal mercadoria eram os produtos de Kashemir, todos em lã puríssima, cuidadosamente tosquiada ao pescoço e dorso das cabras monteses do norte da Índia. Eis-nos, naquele ritual que os orientais tanto apreciam, sentados confortavelmente, a tomar chá de masala com um farrapinho de leite, enquanto um vendedor solícito fazia desfilar diante dos nossos olhos, com gestos largos de prestidigitador, peças de macieza crescente. O nosso guia, sentado ao nosso lado, de chávena na mão, é mais entusiástico a empurrar o negócio e a catalisar o nosso encanto do que o próprio dono da loja, de forma tão evidente que acabo por brincar com isso:
“Vocês deviam convidá-lo para sócio...”
À saída, ao fundo das escadas, enquanto nos passava para as mãos os sacos com as cenouras, o açafrão, as peças de pashmina e as fronhas das almofadas, o 180 confessou-nos, amistoso, que quanto mais nós comprássemos melhor seria também para ele, pois havia reconhecimento pelo seu trabalho de angariação por parte dos comerciantes locais.
Em sinal de agradecimento por essa sinceridade e um pouco mais pelo modo sorridente como aquele tipo, da minha exacta idade, lutava pela vida no meio daquela metrópole tão dura, fiz-lhe escorregar para as mãos uma nota de quinhentas rupias (cerca de oito euros).
Desfazendo-se em sorrisos, queria ainda levar-nos a mais uns locais. A madame não quereria ver uns perfumes, incenso, tapetes? Que não, era forçoso voltar já ao hotel, ir fazer as malas, pois partiríamos essa noite de volta à Europa. Então, sem pressionar mais, pois que sabia sempre perceber quando os momentos chegavam ao limite, o 180 fez parar um táxi, trocou umas palavras com o condutor e anunciou-nos, como uma vantagem, que acordara a tarifa de 100 rupias para o mesmíssimo trajecto que, com o taxímetro a funcionar, nos custara 40 à vinda. Entrámos no táxi, ele bateu a porta com gentileza, meteu a cabeça pela janela e, apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que venham visitar o Crawford Market e que procurem pelo 180...”

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Mumbai, Fevereiro 2012; (2) Wikipedia; (3) (4) (5) Pedro Serrano, Goa, Janeiro 2012.

     

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