19 maio 2015

NÃO VENHAS TARDE: 16. DOMINGO NO PARQUE

26 de Setembro, Domingo
Levantei-me tarde mas, mesmo assim, antes dos outros, que ainda devem estar nos respectivos dormitórios. Não gosto de me demorar no meu, com aqueles zombies que por lá param e que nunca parecem sair dos catres; um ou outro tem mesmo pinta de agarrado, observei um a raspar pensativamente, com uma unha comprida e castanha, a cal da parede ao lado da cabeceira do beliche. Dizem que há quem injecte aquela porra nas veias quando não há produto do autêntico à mão, ouve-se até falar em quem misture maionese nos caldos intravenosos e, a ser verdade, mais uma vantagem em se estar aqui tão vizinho do Lâle Pudding Shop.
Vim para a sala comum esperar por eles e, ao passar pela recepção, fui perguntar que dia da semana é hoje: é Domingo!
A sala de estar tem um sofá e vários maples que já viram melhores dias. Há, também, um grande móvel-rádio, daqueles muito envernizados e assentes em pernas, como se fossem uma cómoda ou um armário de bebidas. Este está sempre sintonizado numa estação que só passa música rock e pop. Sento-me a escrever no diário, já estou uns dias atrasado em relação ao dia de hoje, pois a fulgurância dos acontecimentos e das aflições dos últimos dois dias desbarataram-me a sequência. No rádio explodem de súbito as primeiras notas da guitarra, aguda e nostálgica, do “Europa”[1], o último sucesso do recém-convertido ao budismo Devadip Carlos Santana, peça instrumental que é a coqueluche deste Verão. Em Portugal não se ouvia outra coisa antes de virmos e o inesperado de sentir o som invadir os meus ouvidos, como uma maré-cheia, neste canto do mundo congelou-me a esferográfica sobre as linhas do caderno.
A música, muito dançável e com o seu quê de bolero, pontapeou-me a um fim de manhã na Rotunda da Boavista, no Porto, em que encontrei o Miguel Lamares armado de um sorriso superior na cara barbada, nos olhos míopes ampliados por lentes grossas. Estamos em 1969 e o Miguel é meu colega no liceu. É um gajo enorme e há algo nele que lembra um urso e lhe dá um toque assustador, embora seja um tipo bonacheirão. Outra das coisas boas do Miguel, para além do disco que tem debaixo do braço e se faz rogado em mostrar, é a irmã, a encantadora Peki, uma miúda mais nova e de quem me tornarei amigo no início dos anos 70. Mas nessa manhã, numa esquina da Rotunda, o Miguel pendurava no sovaco um rectângulo esbranquiçado.
Se soubesses o que tenho aqui...
O que é Miguel? – digo, percebendo pelo formato que é um disco – Mostra...
Aposto que nunca ouviste nada como isto – continua ele.
Não sei, sei lá; se não mostras o que é...
Já ouviste uma música chamada “Soul Sacrifice”...?
Confessei que não.
E uma chamada “Evil Ways”?
Também não...
Estás ultrapassado, merdoso – concluiu. – Isto é o que vai dar... Isto é um som totalmente novo...
Depois permitiu que olhasse a capa do álbum, na qual um focinho arreganhado de leão se contornava a carvão numa caricatura em que surgiam cabeças rapadas de mulher, camufladas nos detalhes do desenho[2]. Eu já sabia que o gajo não me ia emprestar o disco, mas não desisti de tentar perceber o que era aquilo: que raio de banda se ia chamar Santana? Até parecia coisa portuguesa, de rancho folclórico! Santana!?

Se eu te trouxer uma cassete, gravas-me isso?
- Talvez..., respondeu. 
Claro que gravou, que o Miguel, apesar do gigantismo e dos modos ásperos, era um coração de leão, grande e bondoso.
E foi assim que, aos dezasseis anos, conheci aquela música que contaminava tudo quanto conhecíamos de uma nova sonoridade que, vista de agora, não é mais do que a música cubana invadindo o rock com a sua batida, as suas congas e o agudíssimo solar da guitarra do Carlos Santana, um som expelido alto como o soprar dos trompetes das bandas de música do Caribe e do México.
Entretanto em Istambul é Domingo e as ruas estão inundadas de gente no caminho até ao lado de lá do Bósforo, onde vamos trocar traveller’s checks por liras. Na ponte que liga a Europa à Ásia e se deixa atravessar em vinte minutos, se olharmos à esquerda vemos o Mar Negro e à direita o Marmára, um mar interior que é uma espécie de filial esquecida do Mar Egeu.
À sombra da ponte, à beira da água, estendem-se pequenos cafés onde, no regresso do banco, nos sentamos a beber uma Coca. O modo de vestir de quem passa faz lembrar o jeito como, em Portugal, se vestem as pessoas da aldeia quando vão à cidade, quase todas as mulheres amarraram lenço na cabeça e os homens que as precedem seguem aperreados em fatos sem gravata e sapatos apertados. Os que parecem ter maior poder económico vestem-se como os ciganos ricos: de preto, a luzir de ouro nos pulsos, nos pescoços e nos sorrisos, chapéus de aba curta e barbas negras. Gente vestida à oriental, com longas vestes, barretinhos ou véus, quase nenhuma. Por todo o lado se veem soldados, fardados, a passear de mãos dadas! Já tinha reparado que, por aqui, se encontram homens a caminhar alegremente de mãos enlaçadas, mas que a defesa nacional o faça com esta descontração é coisa que me espanta.
Multidões apanham barcos que acostam e partem continuamente e, à janela de pequenas camionetas, os condutores gritam os destinos para onde se dirigem. A engrossar esta gritaria, vendedores de água como pulgas, com bilhas à cabeça. Volteámos por entre as bancadas onde se vende peixe frito, boiões com estranhos frutos e conservas. Atrevemo-nos a comprar uma sanduiche com um colorido ímpar e um ar tentador: as duas metades da baguete estão recheadas de rodelas de tomate e verdíssimos pimentos, estreitos e compridos. Dou uma primeira dentada e a minha boca explode em chamas que só acalmam um pouco uns bons copos de água mais tarde e sob o olhar divertido de quem passa. Verde traiçoeiro! Ao cruzar escadas apinhadas de gente perfumes intensos entontecem-nos as narinas, como se todo o escaparate de uma barbearia de bairro tivesse sido estilhaçado de repente.
Voltámos a Sultanhamet, a zona da cidade onde fica o hotel. No parque do lado de lá da avenida deparámos com as cores atrevidas de dois camiões enormes que dizem: Trans-Asia. Os donos são espanhóis e vão para o Nepal. Andam à procura de dois motoristas. Começaram viagem em Barcelona onde tencionam regressar em Janeiro. O Rui ficou tentado com a ideia, a mim, embora me atraia também a facilidade de ter todo o trajecto garantido sem esforço de planificação, não me apetece muito um compromisso tão longo e, além disso, eles só tem lugar para duas pessoas, o que significaria termos de abandonar o Des. Bem, poderemos voltar a passar por aqui e dar uma espreita: há sempre carrinhas pão-de-forma, camiões e camionetes ocidentais acampadas por aqui, uns ostentando riscas psicadélicas no estilo do Magical Mistery Tour[3] e anunciando Magic Bus, outros pintados de amarelo total ou verde-pistáquio; vimos até um autocarro inglês de dois andares, intensamente vermelho, pronto para rumar à Índia mas com a pose de quem acabou de sair de Piccadilly.

Amanhã, se os nossos vistos ficarem prontos, poderemos arrancar para a etapa seguinte: Teerão, capital do Irão, que ainda é reinado de um Xá da Pérsia. Já demos um sinal numa agência de viagem e o Des acha que fizemos mal e podemos ter sido vigarizados. Não sei o que o faz pensar isso, mas, ultimamente, ele parece-me assustado com tudo, o que não deixa de nos surpreender depois daquela noite de projectos tão épicos em Kavala.





[1] “Europa (Earth’s Cry, Heaven’s Smile)”, de Devadip Carlos Santana/Tom Coster, 1976. 
[2] Santana, 1969, Columbia.
[3] Magical Mistery Tour, filme realizado e protagonizado pelos Beatles, 1967. É também o nome do disco da respectiva banda sonora (EMI Records).

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