21 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 6. Trindades

Foi sem qualquer acento de queixa ou tom de mágoa que, oitenta anos depois do sucedido, no ambiente acolhedor e confessional que ganha a sala de estar ao fim da tarde, o meu pai revelou:
“Sabes que não me lembro da minha mãe? É que não guardo mesmo memória nenhuma…”
Sentado na laje da lareira, reajeitando as achas, mantive o olhar nas chamas e deixei que fosse o seu crepitar o único reflexo ao comentário.
“Não tenho aquilo a que se pode chamar uma recordação de uma relação entre mãe e filho…”, continuou, expondo uma ideia que nascera da conversa sobre o modo como certos fragmentos de memórias resistem ao tempo e emergem na consciência isolados de outras recordações, aparentemente rebeldes a uma cadeia de associações que os expliquem.
“Devia ter uns oito ou nove anos quando ela morreu, era pequenote, um miúdo…”, prosseguiu, como procurando na tenra idade uma justificação para tal vácuo. Mas isso também não pareceu remediá-lo:
“Mas é curioso, pois lembro-me de coisas ainda mais antigas, sabes? Lembro-me, por exemplo, de um dia estar ao colo de alguém – era tão pequeno que estava ao colo – e ouvir anunciar: ‘Chegou o Gaspar da guerra!’”.
Era a primeira grande guerra, a de 1914-1918, o conflito do qual esse vizinho regressava e o meu pai usava o último ano da guerra como bitola para calcular a própria idade à época:
“Sim, devia ter os meus três, quatro anitos, estava ao colo de alguém… Não me lembro de mais nada, nem de ver o Gaspar aparecer, nem de quem dizia aquilo a quem, nem sequer de quem me tinha ao colo… Só me lembro dessa frase solta!”
Eu também tinha experiências daquele tipo na minha vida, pedaços desgarrados de memória que vêm à tona e resumi um deles, relacionado com a primeira vez que me lembrara de ouvir uma música específica – o Domenico Modugno a cantar o “Volare”. Mas o meu pai estava mais inclinado em olhar e seguir os contornos dessa cratera onde faltava uma ponte que desse corpo à memória de uma relação entre mãe e filho.
A minha avó paterna, que sempre conheci olhando-me a preto e branco por trás de uma moldura, tivera dez filhos e morrera nova, com um mal arrastado que a afastou da vista dos filhos os últimos meses da vida. O meu pai não recordava nada de directo, de íntimo, relacionado com ela; com a progressão da doença, com os seus últimos momentos, uma eventual despedida…
“Só me lembro de me mandarem ir brincar para o quintal de cima – ela devia estar mesmo a tombar, percebes? – e de ouvir dizer que o funeral foi tão concorrido que o caminho para o cemitério ficara ensilvado de gente…”
Pousei a tenaz com cuidado, levantei-me da pedra e fui correr os estores das janelas que deitam para o terraço, pois lá fora o rosado do poente de Inverno volvera-se numa sombra que reflectia já as nossas silhuetas nos vidros.
“Fecha-me essas persianas”, recordei, como sempre acontece quando executo o acto de encerrar uma janela ao anoitecer, a voz da minha mãe que não gostava de “ver os olhos da noite…”
E num gesto disfarçado olhei a imagem dela que, junto a uma flor de camélia votiva, reina no primeiro plano de uma fila de livros na estante ao lado da lareira. 
“Só há uma cena, uma única cena em que me recordo dela, sabes?”, continuou o meu pai logo que me sentei na poltrona perto da dele.
Mantive-me em silêncio, esperando, pois o que o meu pai precisava não era de alguém que o questionasse, mas de alguém que o ouvisse evocar.
“Sabes o que são as trindades?”, perguntou.
Quase me senti chocado. Claro que sabia o que eram as trindades, sabia-o até duplamente, isto é literariamente e de eu próprio ter assistido, em Verões longínquos, a esse tocar fino de sinos que anuncia as ave-marias e a tardinha, o fim do dia de trabalho no campo... O meu pai julga sempre que eu sou mais novo do que o sou!
“Pois um dia vinha com a minha mãe, uns passos atrás dela, tínhamos acabado de passar a porteira e tocaram as trindades. A minha mãe parou e eu fiquei ali quieto a olhar para ela enquanto esteve parada, sei lá a fazer ou a pensar o quê...”
Ficou uns momentos a fixar a lareira e rematou:
“Não sei o que ela pensava nem o que eu próprio pensei. Fiquei ali parado, a olhar para ela... Mas olha que te podia mostrar, com um erro de centímetros, o lugar exacto onde isso se passou... É a única recordação que tenho dela...”
Com mais atenção do que o costume olhei a minha avó que continuava a fitar-me com muda insistência da moldura no rebordo de granito da lareira. Um pouco mais acima, espreitando na borda da estante, a minha mãe acompanhava atentamente a cena, enquadrada na tardinha rubra e dourada de um friso de livros de lombada vermelha com títulos gravados a ouro.


© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (Novembro 2007).


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