11 maio 2015

NÃO VENHAS TARDE: 14. ISTAMBUL (NOT CONSTANTINOPLE)

Entrámos em Istambul e o que se segue da canção esmorece na nossa vontade de a entoar:
Every gal in Constantinople
Lives in Istanbul, not Constantinople
So if you've a date in Constantinople
She'll be waiting in Istanbul...
São seis da tarde, cai uma chuvinha persistente, está frio e nós só com uma camisa em cima do corpo. Na central de camionagem milhares de pessoas correm para as camionetas com o intuito cego de as apanhar e de sair dali, abrigadas da chuva, ao encontro de um trânsito demoníaco.
Rapidamente tomámos consciência de que a camioneta onde seguem as nossas mochilas e os nossos casacos não vai, afinal, para ali! O tempo passa, dezenas de camionetas chegam continuadamente à estação, mas nenhuma é nunca a nossa.
E assim estamos: encharcados, a tiritar de frio, sem saber para onde ir. Os companheiros da última parte da viagem puseram-se a andar alegremente, no meio de grandes adeuses e dentuças arregaçadas. Querem lá saber do nosso destino, já cumprimos a nossa função no dia deles.
No frenesi dos guichets acabámos por conseguir uma vaga indicação do local onde talvez tenha aportado a nossa camioneta, logo saltámos para um táxi e novo inferno. Apesar de, com grandes acenos, nos ter garantido, antes de entrarmos no automóvel,  conhecer o destino para onde queríamos seguir, logo se vê que o taxista nem sequer percebeu o que lhe dissemos. Não fala uma única palavra em inglês e, de vez em quando, imobiliza o táxi e deixa o volante, sabe-se lá para ir fazer o quê! Exasperado – morríamos de pressa em chegar ao novo local antes que a camionete e toda a gente sumisse no nada – o Rui, sentado ao lado dele, berra-lhe a simplicidade do que pretendemos. Um pouco mais à frente, o Rui e o Des, deixando as portas encostadas, saem do táxi em busca de informações e eu fiquei sozinho, esperando, alheado, no banco de trás. Eis que, num alerta galopante e roçando o horror, me apercebo que o chauffeur fechava as portas do carro (a porta do meu lado não abria por dentro, já o sabia por ter tentado também sair uma vez em busca de informação) e, como se tivesse uma qualquer intenção, manobrava uma inversão de marcha. Gritei-lhe que parasse, mas ou porque não me entendeu ou porque um sujeito sozinho pouco lhe intimidava os planos, continuou a manobra. Rolei banco fora, abri a porta do outro lado e atirei-me para o exterior, quase me estatelando no asfalto. Mas melhor assim, não queria ir parar a um desconhecido porventura ainda mais inseguro do que aquele em que nos encontrávamos.
Sem clientes, o tipo estacionou o carro, ordeiro e confiante de que não havia outro táxi por perto. O Des e o Rui voltaram, entrámos no táxi e continuámos em voltas sem fito pela cidade. Quando nos mentalizámos que não íamos encontrar camioneta nenhuma, mandámo-lo seguir para o Hotel Güngör, o local onde combináramos (nós e mais alguns da camionete original Atenas-Istambul) ir ficar. Essa indicação o homem conhecia, pois o Güngör é do outro lado da rua onde fica o grande parque ajardinado da Mesquita Azul e mesmo pegado ao famoso Lâle Pudding Shop, o Piolho lá do sítio, o café aonde se pode encontrar toda a gente em trânsito por Istambul.

Na Turquia a moeda muda de dracmas para liras (nesses dias cada lira valia 2 escudos portugueses: 1 cêntimo de euro) e o homem do táxi, possivelmente tão exasperado connosco como nós com ele, quer levar-nos 100 liras em vez das 30 inicialmente acordadas. Recusámo-nos a pagar, saímos porta fora, e ele entrou pelo Lâle Pudding Shop perdigotando as nossas costas. Um sujeito simpático que estava no café, turco mas falando inglês, serviu de intermediário à contenda e acabámos por nos livrar do  pesadelo sem lhe pagar um tusto!
No Hotel Güngör, que de hotel, no modo como o entendemos habitualmente, tem pouco – aquilo é apenas uma pensão e bastante rasca – a dormida vai custar-nos 20 liras (20 cêntimos) e se é tão barata, para um pardieiro tão central, é porque a estadia se faz em dormitórios de oito a dez pessoas. E, se queremos alojamento para os três, vamos ter de ficar separados que aquilo está cheio.  
Jantámos no Lâle, mas foi um jantar desperdiçado pois não temos fome, o desânimo e o cansaço deram cabo do apetite. Quanto ao café-restaurante, é um poiso de decoração bastante ocidental, cheio de hippies e freaks e onde a música de fundo consiste em Dylan e o último dos Pink Floyd. Aqui, tal como em Portugal quando saímos, ouve-se o “Shine On You Crazy Diamond”[1] e, à tona da infelicidade, a música traz-me aos braços Guimarães e o pessoal de lá. Antes de deixar o café, sem o consolo do I Ching, que anda perdido sabe-se lá onde, tomámos uma única decisão: a de continuarmos viagem, mesmo sem mochilas, sem casacos e em fralda de camisa. Deitámo-nos cedo, para esquecer e tentar derreter o frio que se nos infiltrou no corpo por termos estado tão longamente encharcados. O meu dormitório tem cinco beliches e, felizmente, coube-me um dos de cima. O aspecto geral de dois ou três gajos que vegetam por ali não é tranquilizador e um deles, de olhar enevoado e ausente, cabeceia sentado, enquanto coça os braços maquinalmente.
Quero lá saber: tapo-me até ao pescoço com o cobertor de papa, abraço-me, e adormeço quase instantaneamente.
Fotos: Istambul, anos 70, fotógrafos desconhecidos [fotos obtidas na Internet].




[1] Do álbum Wish You Were Here, 1975, Harvest/EMI Records.

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